Acervo pessoal. Na foto: Amanda Annunciato. Fotografia de: Wellington Johnny Araújo Cunha

Como me sinto depois de um mês sem usar celular

Quantos dias você acha que conseguiria ficar sem seu smartphone?

Amanda Annunziata
19 min readJul 9, 2020

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Olá!

Meu nome é Amanda. No momento escrevo este texto ouvindo rádio (rádio mesmo, aqueles que vem escrito AM/FM e um botão rolante escrito “tuning”, usado para você ficar procurando a frequência certa) em frente ao notebook. Nem sei onde está meu celular, faz um mês que não uso. Meu instagram está desativado. Meu facebook também. Você pode estar se perguntando.. Nossa Amanda, quantos anos você tem? Em que ano você vive?

Tenho 21 anos, e, bom, acho que 2020 mesmo. Se não perdi muito a noção de tempo, porque, afinal.. meus relógios, todos, estão quebrados. Só consegui levar para consertar alguns dias atrás, mas ainda não estão prontos. Estou acompanhando o horário aqui pelo notebook. Quando saio, saio sem noção da hora. Sem relógio, sem celular. Mas, na verdade, acho que isso tem me dado muito mais noção de tempo que antes (ainda que não dispense meus queridos relógios de ponteiro).

Olhar as nuvens, acordar com o sol, acompanhar a sombra dos prédios na avenida indicando que está perto dele se pôr. Esses pequenos detalhes podem passar despercebidos pela nossa forma extremamente condicionada de lidar com o tempo. O encontro com o eu parece cada vez mais difícil, complexo e distante. Você é bombardeadx por informações ao longo de todo o dia. Parece que não responder a uma solicitação de imediato é um absurdo. Você tem que estar disponível o tempo todo. E não, você não precisa estar. E o que faz acharem que você tem de estar? — Seu celular.

Estava lembrando com uns amigos o fenômeno da internet. Ela começou a interferir sim, e muito, na nossa maneira de acessar informações, nos comunicarmos, entre outras questões mais (mas também não podemos esquecer dos inúmeros benefícios gerados a partir dela num sentido de busca por uma maior democratização da informação). As redes sociais tinham uma interferência em nossas vidas, como Orkut, mas nada tão exagerado ou preocupante. MSN já era um pouco diferente: passávamos horas conversando em frente ao computador, muitas vezes apenas digitando. Não lembro da possibilidade de “mandar áudio”. Ou, se tivesse esse recurso, ninguém com quem eu conversava usava, e, ainda que tivesse, acredito que funcionaria num sentido totalmente diferente do que usamos hoje. Também não tinha a opção de saber se a pessoa tinha visualizado sua mensagem. Apesar de que, na época, quando uma pessoa entrava no MSN, todos os seus contatos eram avisados. Mas dificilmente alguém deixava uma mensagem offline. As conversas normalmente começavam e terminavam enquanto você estivesse online (como uma ligação, mas tudo digitado e permitindo várias conversas ao mesmo tempo em diferentes “janelas”, tendo o recurso de histórico de conversa à parte do software em si, fazendo com que a cada sessão nova, as janelas de conversa fossem todas “reiniciadas”).

O fato é que, na época, o computador e a internet estavam presos a um lugar fixo. Não estavam no seu bolso. As pessoas levam o celular pro banho, pro banheiro, pro trabalho, para a cama. Para encontros românticos, com os amigos, em que olhar indelicadamente a tela do seu aparelho enquanto a outra pessoa está falando com você face a face tem parecido, ultimamente, ser algo normal— o que para mim é uma tremenda falta de respeito; se faz isso comigo eu paro de falar na hora. Para que estabelecer uma conversa assim? A pessoa está ali, na sua frente, dispondo de toda sua presença e disponibilidade.

Além disso tem a questão de que, na época mais frequente do computador ligado ao CPU (ou até com o notebook), você desligava o aparelho. Demorava um certo tempo para ligar e desligar. Então se realmente quisesse usar o computador, ia até ele para ligar, resolver o que precisava e logo depois desligar (principalmente para não sobreaquecer o CPU, entre outros danos que pudessem ser causados por um longo período de atividade da máquina). Que sonho poder desligar seu celular, hein? Digo, sem ser julgadx por isso, como se fosse o que devesse ser. Imagina? Momentos completamente livres. “Por que não atendeu minha ligação?? Como não viu minha mensagem?” “Meu celular estava inativo/desligado” “Como assim???” — Não é obrigação sua estar disponível o tempo todo. Isso é completamente insustentável. As pessoas não desligam o celular nem para dormir. Deixam ligado carregando, para tomar banho, comer, muitas vezes realmente utilizando ele nessas atividades, como dito anteriormente (e essa atividade constante do aparelho celular pode inclusive causar acidentes, como ao mexer no celular enquanto atravessa a rua ou mesmo ao tentar usar enquanto dirige, o que é extremamente irresponsável).

A internet está fixada a você, não mais ao computador, através do smartphone, aparelho que comumente fica constantemente ligado (ainda que os notebooks tenham surgido com a facilitação do transporte e uso, nem se compara a adaptabilidade e transporte do celular, que se associa à questão de deixá-lo ativo o tempo todo). Apesar de alguns recursos disponíveis para ocultar algumas informações à respeito de sua disponibilidade, as notificações vão aparecendo ao longo de todo o dia, num dispositivo preso a você o dia inteiro.

Claro, só o fato do celular em si, quando a linha não mais se resumia a telefone fixo, já foi uma questão de um tanto de privação de liberdade no caso, na medida em que podia atender ligações onde estivesse (ainda que com muitos limites no começo); a internet nesse dispositivo foi um adicional, mas um adicional muito mais pesado do que podíamos imaginar. Carregamos ele por onde vamos. O acesso a informação não necessita mais de uma deslocação espacial. Isso, apesar de transformador do ponto de vista da acessibilidade, pode ser extremamente complicado. Bibliotecas, museus, livrarias; esses espaços onde teoricamente você iria para buscar informação, muitas vezes disponibilizam seus conteúdos de modo que possam estar na palma da sua mão (ainda que boa parte das vezes não seja suficiente, porque nem tudo é substituível pelo virtual). Aqui, há dois problemas. O primeiro, é uma questão física: estamos ficando acostumados a nos locomovermos menos para resolver as coisas. Isso pode ser problemático do ponto de vista social, cultural, mental e corporal. Além disso, temos um segundo problema muito destacável não mencionado antes, que está sobretudo associado às redes sociais: receber informação sem querer recebê-la.

O fato de você não ir até a fonte de informação para tê-la já é uma questão, mas imagine ser bombardeadx por imagens e textos que não necessariamente deseja receber? Vendo o tempo da sua vida se valer perante um monte de informação sem nenhum filtro, seleção, curadoria, que podem ser completamente inúteis? — ou, muitas vezes, até causar um mal estar desnecessário. Claro, você pode selecionar seus contatos. Adicionar e seguir quem você quiser. Se algo desagrada, você não segue mais ou “desfaz a amizade”. Teoricamente isso já seria um tipo de filtro, seleção, curadoria. Mas não é bem assim. Colocamos relações reais nas redes sociais virtuais. Pode ser uma afronta “desfazer a amizade” com quem você não quer receber tanta informação, por exemplo. Apesar de ajudar, esses filtros nem sempre funcionam 100% como desejamos. Ainda sim, você pode ser surpreendidx por informações que agreguem muito. Ou tirem você da sua zona de conforto (ainda que normalmente algoritmos nos coloquem em bolhas de agrado). Mas o problema é ficar presx nesse looping infinito de informações que podem ou não ser úteis pela vontade de ser surpreendidx, simplesmente.

“Mas eu quero saber pela pessoa me contando!”. Lembro de um amigo que desativou as redes sociais por muito tempo. Ele falava: “Amanda, eu cheguei, por exemplo, a ver fotos de um colega que morou comigo na Inglaterra. Ele está morando em outro país agora; mas quando eu encontrar com ele eu quero ficar sabendo dessas coisas com ele me contando, não com a rede social me contando tudo da vida dele. Se não, ao nos encontramos vamos contar uma ao outro se a rede social conta tudo?” E eu entendo completamente o que ele diz. Parece que, de certa forma, a rede social altera nossas relações reais de uma maneira não só indireta como também direta. O prometido vai querer olhar seus stories para saber o que estava fazendo no final de semana, já que não ligou pra ele nem mandou mensagem. Ele com certeza se importa com o que você está fazendo, mas, ao invés de demonstrar isso perguntando o que você fez, simplesmente passa a te monitorar por meio das redes — muitas vezes fantasiando coisas desnecessárias. Ou, também, você pode aproveitar isso e ficar postando coisas para provocá-lo, e fica tudo nessa troca de ferpas sociais (a quem diga que nunca passou por uma situação parecida com nenhum tipo de relação, gerada pela vitrine proposta pela rede social, sobretudo Instagram), o que pode causar males desnecessários às relações rais. Quando a rede social propõe contar tanto da vida de alguém virtualmente, e tantos se dispõem a tal, isso interfere diretamente nas formas de mantermos essas relações e vínculos. É como se ela propusesse outra maneira de mantê-las e gerá-las, mas não substitui questões essenciais. E por mais que de certa forma beneficie algumas formas de se relacionar, ainda sim pode ser prejudicial.

É como se ao ter uma rede ativa e não publicar, não participar, ou parar de fazê-los, já fosse motivo para outras interpretações (nossa, o que será que aconteceu com tal pessoa? será que ela está bem? faz tempo que não posta nada.. etc.). Você estando ativx nela, está prontx para ser julgado pelo que posta, o que deixa de postar, se posicionar, etc. (ainda que pessoas que de fato lhe conheçam já saibam seus posicionamentos, opiniões e ações sobre várias questões que podem estar em pauta naquele momento). É um monitoramento constante, e não só pelo crush. Todo mundo se monitora, num rolamento de um feed infinito com informações de pessoas, muitas vezes, que há tanto tempo você não vê, ou nem tanto contato assim e que por vezes não participam tão ativamente da sua vida, perdendo um pouco de sentido a necessidade em saber o que elas estão fazendo ou não, simplesmente — para quê usar seu tempo para receber esse tipo de informação? Claro, as redes sociais também podem servir de apoio para adentrar em comunidades, serem lugares de vendas, de aprendizado, de inspiração, luta e engajamento político — mas é preciso dedicar tempo para fazer toda uma seleção e curadoria quanto a esses conteúdos que queira receber. Ainda sim, corre-se o risco de ter meias-informações, meias-inspirações, meios-aprendizados, justamente pela proposta ser algo mais rápido e líquido mesmo, apesar de poder apresentar seus benefícios em certos graus.

As opções de silenciamento de stories no instagram e publicações facilitou muito as coisas, mas, ainda sim, há recursos que te prendem de certa forma ao aplicativo de forma visivelmente intencionadas, como o recurso de poder ver quem viu seu stories por somente 24h. Isso é claramente uma tentativa de querer te deixar preso ao conteúdo e interatividade do aplicativo.

Toda essa energia e tempo dedicados as redes sociais nos deixam num certo estado de prisão ou obrigação ao acesso. Todo esse bombardeio de informações está nos fazendo muito mal e não estamos percebendo ou não estamos sabendo, ainda, lidar com isso. Está gerando crises de ansiedade, insônia, depressão, vício. É como se você estivesse trabalhando o tempo todo — para outras pessoas — e muitas vezes, literalmente, a partir do emprego oficial, de fato. Quantas vezes você usa seu smartphone para se conectar consigo mesmo? Acho que é muito difícil desenvolver isso conectado a ele, ainda que tenha opções de aplicativos de meditação, por exemplo. Dificilmente você consegue se conectar a si mesmo ao mesmo tempo que esteja conectado a inúmeras pessoas com diferentes solicitações a você.

Muitas coisas legais já desenvolvi a partir das redes sociais. Lugar para morar, compra e venda de produto, interação em comunidade de fãs de algo que gosto, publicação de conteúdo artístico e profissional, pessoas que conheci e levo para a “vida real”. Até mesmo sobre essa questão de saber o que outra pessoa que não vejo há tempo está fazendo, já me levou a situações muito interessantes. Mas eu percebo que não dá para ficar conectado com isso 100% do tempo. É como se tivéssemos que escolher, em alguns momentos, viver entre o real e o virtual. E com certeza nessa jogada me dá vontade de desativar tudo e escolher o real. Não dá para dedicar tanto tempo assim ao virtual.

Eu desativei e ativei o facebook várias vezes durante esse tempo sem celular (tenho aplicativos de delivery que são associados a essa conta, preciso deixar ativa nesse caso), e o instagram eu desativei depois da primeira semana. O facebook tem ainda mais ferramentas: textos, notícias, grupos para interagir. Não que o instagram não tenha ferramentas úteis, mas é uma dinâmica totalmente diferente. Instagram é pura imagem. É o intuito do aplicativo. É uma vitrine. O que facilita para muitos criadores de conteúdo e imagem. Mas para outros, pode ser cansativo, de certa forma. Ou simplesmente pode se criar um hábito, ou melhor, vício, em fazer imagem sobre tudo aquilo que se vivencia.

Todos nós temos vontade de sermos vistos. De notarem nossa existência. O que fazemos, o que gostamos, o que não gostamos, concordamos e discordamos. E muitas vezes usamos as redes sociais para publicar essa existência. Mas a questão é que as vezes isso pode revelar uma carência de direcionar o compartilhamento dessa existência com pessoas que realmente fazem e querem fazer parte de nossas vidas. Pessoas reais. Presenças reais. Pessoas que realmente querem te ouvir, participar da sua vida, estar com você. Saber do que você gosta ou não gosta. Ouvir sua opinião.

Entendo pessoas que viralizam e criam conteúdos ótimos a partir da revelação de suas ideias, não há nenhum problema. Inclusive, acho que a disponibilidade da junção smartphone+redes sociais pode instigar muito a criatividade e criação (expressão de ideias, arte), nas pessoas, o que é ótimo. Mas é importante se pensar sobre a possível carência que podemos estar vivenciando (ou sempre termos vivenciado, de certa forma, ao longo da experiência humana — mas sabendo que a virtualidade possa ter afetado significativamente isso) sobre pessoas estarem realmente conosco e construírem uma relação verdadeira a partir da sincera disponibilidade e vontade de estar com você.

E aí vem o paradoxo de você por vezes prestar atenção no seu celular ao invés de prestar atenção na pessoa que está falando com você. Não… Não faça isso. Aquela pessoa é real. O tempo e espaço ali são reais. A disponibilidade dela a você é real. E o fato de redes sociais e celular estarem tão interligados nesse texto é porque uma coisa está totalmente ligada à outra. A maneira que você utiliza seu smartphone tem completa relação com a atividade em suas redes sociais e vice-versa. Seu celular conecta você a pessoas reais, mas, acredite, precisamos valorizar a espacialidade. O toque, o olho no olho, o sorriso, o abraço, o ouvido de quem está te ouvindo, todos os gestos e oratória da pessoa que está disponibilizando tempo e interesse ao falar com você. O instagram é só uma realidade paralela, que pode, muitas vezes, trazer a falsa sensação de que está recebendo a atenção que você merece — e frequentemente usuários se contentam com “migalhas” de atenção como a visualizada no stories e curtida do crush na foto, achando que isso possa ser suficiente para se estabelecer uma ideia de disponibilidade a você; cadê a conversa? o chamado real para sair? Atentemo-nos a quanto podemos estar disponibilizando tempo e energia nas redes e apenas recebendo migalhas em troca, ou até usando esse tempo e energia conscientemente querendo recebê-las, ainda que não se perceba o quanto isso pode ser problemático e ruim.

Todo mundo diz o tempo todo que não tem tempo. Mas precisamos trocar a palavra “tempo”, nesse caso, por “disponibilidade”. O quão disponível você está para ouvir uma pessoa que está do seu lado? O quanto você está disposto a enxergar o que ela tem a lhe oferecer, ao invés de se superiorizar ou superiorizar aquilo que você já tem (ou supostamente tem através do que as reações virtuais lhe proporcionam)? É sobre priorização. O que você quer priorizar? Isso que é o tempo. É sobre o que você escolhe. Mas muitas vezes não admitem isso para si próprios ou para os outros e simplesmente dizem “não tenho tempo”, para diminuir o peso dessas escolhas. Você prefere uma relação líquida ou uma relação de verdade (relações mais líquidas podem se tornar uma “relação de verdade”, mas tudo depende de disponibilidades)? Prefere olhar para o outro de igual para igual ou nunca saber quanta coisa boa poderia vir do mesmo? Ainda sim prefere abaixar sua cabeça para a tela, simplesmente? Sugiro que veja agora quanto tempo usa para ficar no seu celular: são escolhas feitas diariamente.

Posso dizer que o Whatsapp também foi um alívio (será que Zuckerberg denunciará este meu texto? rs. Não é por querer, já que as três redes sociais lideradas por ele são das mais usadas no Brasil hoje — Whatsapp, Instagram e Facebook). Teoricamente, o Whatsapp estaria mais íntimo de pessoas que você tem mais contato, já que necessita do seu número de telefone (era isso que achava quando desativava instagram e facebook e deixava só ele). Mas o que acontece é que ele gera uma exigência de disponibilidade muito maior que os outros aplicativos.

Dificilmente se tem uma conversa com começo, meio e fim pelo Whatsapp, o que para alguns pode ser um terror (sobretudo pessoas ansiosas), e uma mão na roda para outras (que não querem mostrar disponibilidade o tempo todo, ou simplesmente são realmente desrespeitosas a ponto de ignorar ou negligenciar as mensagens das outras). Como já dito anteriormente, começo meio e fim, como uma ligação (quando ambas estão online) era algo que acontecia no MSN. Eu realmente não entendo a dificuldade disso no Whatsapp. Claro, é mais comum deixar mensagens quando ora uma pessoa está online e a outra offline, mas eu não entendo qual a dificuldade em finalizar uma conversa rápida quando as duas estão online. Pode se tornar uma “conversa flutuante”, sem começo nem meio nem fim, o que para quem é ansioso pode gerar muitos gatilhos, principalmente por ficar pensando sobre o assunto as vezes horas ou dias com coisas que poderiam ser resolvidas em minutos (às vezes ligar diretamente é muito mais útil nesses casos).

Estou tão bem sem essa coisa toda, essa demanda de tempo e energia com coisas às vezes tão desnecessárias ou até mesmo frívolas. Relações líquidas. Atenção falsa. Tempo em coisas superficiais. Adaptei-me à rotina sem celular. Se eu disser que daqui a pouco não teremos mais celular como os entendemos hoje (daqui uns anos), muitos poderão achar que estou doida, mas, sim, é isso que eu acho. Boa parte da população mundial se vê tão presa a isso no momento, mas acho que daqui uns anos (não faço a menor ideia de quantos, mas num certo futuro longínquo) smartphone pode se tornar algo extremamente obsoleto. É assim que as coisas funcionam. Pensei, por exemplo, em comprar um smartwatch, para ter funções tecnológicas que atendam minhas necessidades sem necessariamente estar conectada (apesar de saber que ele tem essa função de conectividade ao smartphone). Sinto falta do cronômetro e contador de passos para treino, por exemplo. Um smartwatch e um telefone fixo acho que talvez fossem uma boa ideia, para solicitações necessárias do dia a dia (apesar de muitas coisas só poderem ser feitas por aplicativo hoje em dia). Mas, não dá. Não dá para continuar nesse ambiente tão tóxico que o celular tem gerado ultimamente. E durante a pandemia, apesar de para alguns o dispositivo estar sendo ótimo para matar a saudade de entes queridos, parece que você pode passar tempo exagerado conectado. Que tal ler um livro? Se conectar a si mesmx? Fazer uma meditação? Se desconectar? Falar com um amigo (numa conversa de começo, meio e fim, uma conversa real!)?

Amanda, e o que você está fazendo com as fotos que você não está postando? —Guardando. Guardando para mim. Guardando com quem eu queira compartilhar realmente. Fazendo uma curadoria. Selecionando (publiquei também algumas no instagram quando ainda estava ativo). Cuidando de cada informação, separando, organizando. Dificilmente fazemos isso quando tiramos todas as fotos pela câmera do celular, enchendo as galerias facilmente com mais de mil fotos em duas semanas (ou menos) jogando tudo para uma pasta no computador sem nem se dar conta do que tem lá, muitas vezes — essa desorganização vem sobretudo pela enorme quantidade de imagens geradas e como podem ser tantas vezes descartáveis, sobretudo pela relação gerada pela disponibilidade de se ter uma câmera na mão 24 horas por dia, praticamente.

Uma das coisas mais legais de ficar sem celular está sendo fazer todos os registros por câmera fotográfica. A relação com a câmera do celular não é a mesma que uma câmera de fato. Essa questão da multifuncionalidade do smartphone com coisas que antes não eram embutidas todas num único dispositivo também é importante, pois há uma relação que podemos desenvolver com cada um desses objetos: lupa, lanterna, câmera fotográfica, mapa, calculadora. Todos esses objetos têm uma história e uma forma de se relacionar com o ser humano diferentes, que podem se tornar um pouco distantes e superficiais ao embutir todas as suas funções ao celular. E, com a câmera do celular na sua mão praticamente o dia inteiro, podendo tirar foto e gravar qualquer coisa a qualquer momento, há uma completa diferença na relação com o ato de fotografar através da câmera. É como se já existisse uma pré-curadoria ao pensar num momento para ser fotografado a partir da câmera fotográfica. Não é um objeto que você tem na mão o tempo todo como smartphone — além do fato de estar conectada ao celular poder dar a impressão de que tudo que você fotografa tem direta relação com o ato de postar nas redes sociais, o que faz com que se perca um pouco a essência do significado da fotografia em múltiplos sentidos (entre outras razões mais das camadas envolvidas em torno da câmera fotográfica que só ela proporciona). Sobretudo no que diz respeito ao registro em si como memória e afetividade. A razão da fotografia se resumir apenas a postar nas redes sociais está longe de fazer sentido para mim, apesar de adorar compartilhar nelas também (inclusive gosto de mostrar de vez em quando esse sentido mais cru da fotografia nas redes, num sentido mais de fotografia caseira e afetiva). O problema não é compartilhar seu momento nas redes, ou fotografar pelo celular. Só é importantíssimo lembrar, quando for fotografar, o porquê de você estar fotografando. É só para postar? É para ganhar curtidas? Para ficar bonito no seu feed (às vezes fico até assustada em como encontros ou festas podem ser pensados apenas para serem postados)? Ou realmente é para registrar um momento?

Toda essa saga sem celular começou porque, nesse período de pandemia, estava higienizando frequentemente o celular com álcool e tinha entrado um pouco do líquido embaixo da tela, então deixei num saquinho de uma porção de arroz durante a noite do dia 08/06/2020 para o dia 09/06/2020, para sugar esse líquido, desconectado da bateria. No dia seguinte, havia melhorado um pouco, mas nada tão significativo (havia manchas de semanas anteriores também). Hora que fui colocar para carregar, já que a porcentagem já estava baixa por ter ficado fora da tomada a noite inteira, percebi que não conseguia encaixar o conector. Depois de muito tentar, notei, então, que tinha um grão de arroz dentro da entrada do carregador.

O grão de arroz ficou encrustado, um tanto que despedaçado, lá dentro. Tentei por dias tirar com pinça, agulha, lapiseira… e nada. Então o celular descarregou por completo no dia 09/06 e aqui estou escrevendo para vocês, um mês depois. Adaptei-me então à rotina sem celular. Sem cobranças para além das que tenho e quero realmente me dedicar. Sentindo o tempo. Sentindo eu mesma. Ficando comigo mesma. Conversando com pessoas presentes.

Ofereceram-me ajuda para tirar o grão de arroz do celular (tinha pensado que precisaria levar numa assistência técnica, mas não queria pensar em sair de casa para tal nessa quarentena, mesmo que abrissem depois). Mas, para ser sincera, já nem estava pensando nisso mais. E, sobretudo, acho que nesse momento de quarentena essa experiência tem sido possível de outra forma, já que não se tem muitas necessidades emergenciais em que se precise de ligações fora de casa, mapas, ou coisas do tipo. Então acho que também estou usando o momento para mergulhar nisso de maneira mais profunda.

De qualquer forma, é muito provável que, talvez, em algum momento, eu volte a usar (será? rs). Acho que sobretudo por certa exigência social passiva (ou ativa, como talvez devido algum trabalho). Talvez até mesmo reative as redes sociais. Mas é muito bom, interessante e delicioso passar por esse processo de desintoxicação. É como se realmente fosse isso. Uma limpeza nas minha células.

Acho que essa é a verdadeira liberdade. A que permite você viver e ficar sem estar disponível o tempo todo, estando disponível de fato para o que você quer e no momento que quer estar. Como visitar um amigo ou amiga e passar horas conversando com essa pessoa perdendo a noção do tempo. Indo atrás de informação que você realmente queira receber. Passando seu tempo com coisas e pessoas que realmente importam para você (e se importam com você): pessoas que querem participar da sua vida de verdade. Querem te ouvir. Querem estar com você. Querem dar risada com você. Querem fazer presença em sua vida e permitir que você seja de fato presença na delas. Usando seu tempo pensando em coisas que gosta, não gosta, projetos que queira fazer, trabalhando em algo que queira realizar, estudar, saber, aprender, aplicar e construir em sua vida. Se autoconhecendo, se auto-permitindo. É tudo sobre possibilidades, disponibilidades, responsabilidades e, sobretudo, construção. O que você quer construir em sua vida? O que já construiu? O que está construindo? O quanto deixar seu celular ativo tanto tempo ajuda ou atrapalha nesse projeto de paz em sua vida? Como pode lidar melhor com isso?

Claro, este texto está sendo feito a partir de alguém que vive em condições urbanas no centro de São Paulo, em que não ter um smartphone pode parecer uma das coisas mais absurdas para alguém. E também a partir de uma condição econômica que me permite ter um smartphone — algo que fui acostumada a ter desde a adolescência— e que me permite também continuar minha rotina a partir de um notebook com acesso à internet. De qualquer forma, o intuito do texto é pensar que independentemente do contexto, o dispositivo celular tem sido de grande impacto em nossas vidas, mesmo sabendo que, para muitas pessoas, viver sem ele possa ser algo completamente normal — ainda que ache muito difícil hoje em dia, estando convencida de que a ideia de ter um smartphone tenha ultrapassado fronteiras de região ou condição econômica cada vez mais.

O celular não é de todo ruim. Ele pode ter elevado grau de importância e utilidade em diversos momentos (as redes sociais também não são de todo ruim, na medida em que compartilhamento da existência a partir delas também possa ser algo a agregar). Eu, por exemplo, tenho celular desde os 9 anos de idade (um Nokia 1208 ganhado de presente por primos queridos). Meus pais trabalhavam fora o dia inteiro e eu ficava sozinha em casa, com 10 anos estudava numa cidade vizinha e fazia tudo de van escolar. Era importante ter celular para manter contato com meus pais e ter um recurso para qualquer emergência (importante ressaltar que isso é muito diferente do que hoje fazem ao condicionar uma criança — desde uns 2 anos de idade — a depender de um smartphone; inclusive, não pelas funções que um Nokia 1208 teria, mas justamente pelas funções que não teria). Ter rede social desde mais ou menos essa idade (por volta dos 10 anos) também me fez perceber, por exemplo, paixão por design, edição de imagens e fotografia em geral. E depois, também, o aprimoramento da paixão pela escrita.

Mas, admito que, depois dessa limpeza e sensação tão profunda e gostosa de liberdade, é difícil pensar em adaptar o que chamamos de celular hoje atendendo a essas sensações deliciosas de desprendimento, conexão e paz, por mais recursos que possam vir a ter no dispositivo como silenciamentos, tempo de uso, não perturbe, entre outros. É só importante lembrar de se desconectar um pouco dessa virtualidade, percebendo com mais atenção os momentos reais, onde você está e o que está a sua volta. Valorizando momentos e pessoas que realmente estão presentes, lembrando da sua vida e existência no planeta azul que moramos chamado Terra, bem como todos os seres e natureza que nele há. Aliás, o mais importante de tudo isso, de toda essa experiência de desconexão, é lembrarmos de estarmos conectados com nós mesmos e com o universo. É lembrarmos de estarmos disponíveis para a existência de fato, para a VIDA!

E então, vocês acham que ainda tem arroz no meu celular ou não? E você, o quanto queria um grão de arroz no seu celular?

Para quem você quer estar disponível? E para o que você quer deixar de estar?

Amanda

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Amanda Annunziata

Historiadora da arte que ama entretenimento, ciências da natureza, línguas, música, literatura e filosofia — e cresceu assistindo animes.