O que é “mimimi”?

Amanda Annunziata
6 min readApr 12, 2021

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Texto por Amanda A. Lara S.

Design feito pela autora para capa do texto.

Classificada como onomatopeia, “mimimi” se tornou uma expressão utilizada para designar um tipo de choro, reclamação. Apesar de “buááá” ou “unhééé” serem consideradas tradicionalmente as onomatopéias mais apropriadas para choro nos gibis brasileiros, o “mimimi” tem se tornado uma expressão utilizada para caracterizar um choro a partir de uma perspectiva diferente da que estamos acostumados. Comumente acompanhada da expressão “o choro é livre”, o termo viralizado na internet e muito sustentando em comentários nas redes sociais se tornou uma tentativa de atacar as pessoas propondo uma cultura opressora de riso a partir do deboche sobre a reclamação de alguém.

Meme referente ao “mimimi” que viralizou na internet. Disponível em: https://www.meionorte.com/curiosidades/saiba-quem-e-o-garotinho-do-meme-mimimi-307094

A opressão por deboche vem sendo uma forma de dinamizar atos opressores a partir também de uma maneira de minimizar seus efeitos e despotencializar sua gravidade — e a gravidade da reclamação em questão — propondo uma forma de ignorar suas consequências. É uma sucessão de aparatos que sustentam uma forma ataque, sem que se perceba de imediato seu caráter autoritário — e que pode ser considerada, portanto, uma forma de violência.

Foto retirada de pesquisa de imagens na ferramenta Google pra a expressão “mimimi”.

Essa imagem acima define claramente a questão de que o mimimi é usado por alguém que está tirando sarro de algo, dando risada, enquanto o outro está reclamando, lamentando. Porém, se há algo doendo no outro de verdade, não há motivos para “hahaha”, não há uma graça que não faça parte de uma comicidade minimamente sátira, nesse caso. Debochar da dor do outro é uma das mais infames e desonrosas formas de oprimir alguém, pois diminui e despotencializa a gravidade da dor. Nem nos piores confrontos entre vilões e mocinhos de histórias de ficção costuma se ter esse tipo de situação, pois esse riso de deboche deslegitima a fala do outro. Como a dualidade de vilões e mocinhos costuma afirmar a existência do outro dentro de um jogo, dificilmente isso acontece. Já o deboche anula o outro, portanto a pessoa se retira “do jogo” a partir do momento que não se importa ou finge não se importar com o outro e com o sentido da discussão, e dessa forma se anula o jogo também.

Ainda que o autor fale de uma questão geral sobre o jogo, Huizinga traz uma passagem em seu texto que pode facilitar a compreensão dessa anulação do outro e do sentido do diálogo a partir do deboche, que faz com que aquele que o faz se retire da ponte de conversa e descaracterize um caráter sólido e sério de discussão, a partir dessa desletigimação que abala a atmosfera criada no momento em que não reconhece o outro, tirando sarro do círculo de sentido criado. Assim como no aparato geral em Homo Ludens, “jogo” aqui não se trata exclusivamente a uma questão de brincadeiras, mas a um aspecto geral do caráter lúdico do ser humano — aliás, o conflito pode fazer parte de um jogo:

“O jogo acaba: o apito do árbitro quebra o feitiço e a vida “real” recomeça. O jogador que desrespeita ou ignora as regras é um “desmancha-prazeres”. Esse, porém, difere do jogador desonesto, do trapaceiro, já que o último finge jogar seriamente o jogo e aparenta reconhecer o círculo mágico. É curioso notar como os jogadores são muito mais indulgentes para com o trapaceiro do que com o desmancha-prazeres; o que se deve ao fato de este último abalar o próprio mundo do jogo. Retirando-se do jogo, denuncia o caráter frágil desse mundo no qual, temporariamente, se havia encerrado com os outros. (…)” (HUIZINGA, 2019, p.13 e 14)

O riso provocado pela satirização da reclamação de alguém vem acompanhado desse encerramento de diálogo que autopromove o opressor como aquele fora do “jogo”, que tira sarro da situação “de fora”, pois não se compromete no diálogo. Isso porque o opressor dificilmente está num local de escuta. Ele só fala e não quer escutar, ele não quer saber. O ditador é aquele que impõe as regras e suprime as manifestações, porque não quer lidar ou “perder tempo” com opiniões contrárias, pois se considera somente certo aquilo que lhe faz parte e lhe convém, o que legitima sua parte. O deboche provoca esse tipo de cunho. Portanto caso você ou alguém que conheça costuma se esquivar de situações de ataques ou reclamações fazendo piadas com as situações que possa ter provocado dor, saiba que isso pode estar fazendo parte de uma atitude opressora.

Aliás, comumente o discurso “geração mimimi” tem sido usado com frequência para diminuir as potências de pautas importantíssimas dos movimentos sociais para continuar legitimando um discurso opressor que causa dor a alguns grupos de pessoas. É como se essas pessoas se sentissem acuadas pelo discurso de lacração e cancelamento por saberem que têm uma visão que vai ser linchada pela sociedade atual, e quer fazer uso de discurso opressor com livre e espontânea vontade e legitimação sem que reclamem disso. No mínimo, um pensamento autoritário.

Quando uma reclamação tem pouca argumentação, é até compreensível certo descaso à indignação do outro — principalmente quando, nessa reclamação, alguém se coloca numa posição de oprimido de uma forma manipuladora, falsa ou falha — mas, a partir do momento que isso revela uma dor de fato e sobretudo com diversos fatos históricos, não há argumentos que faltem para uma mínima empatia. Na verdade, o pior ao se deparar com alguém dizendo que algo é mimimi é justamente a negligência, o não se importar, a falta de compromisso com a outra pessoa, a falta de compromisso com a dor e escuta do outro, é o não se importar com o outro. O deboche faz com que as pessoas se sintam legitimadas pelo riso e, nesse caso, pior do que fazer uma piada, o simplesmente lançar que algo é “mimimi”, não sustenta nenhuma ideia que não somente a negligência à dor e situação do outro.

As problemáticas em torno da questão do “mimimi” revelam uma questão de dualidade entre opressor e oprimido, (Boal), mas quando se abre um espaço de diálogo construtivo, essas barreiras duais podem se tornam uma teia plural de construção para além de uma dicotomia nítida. Tanto o ato de responder a determinada situação vangloriando como lacração, quanto cancelando, ou responder algo considerando aquilo como “mimimi”, simplesmente, encerram diálogos. Não se estabelece uma construção discursiva porque em nenhuma dessas situações se reconhece a importância do outro como agente, sempre um tentando se prevalecer sobre a anulação do outro. Aliás, o mimimi costuma aparecer nas lacrações e cancelamentos.

Usar a expressão “mimimi” como diminutivo de dor das pessoas é algo que atrasa nossa evolução de seres comunicativos, criadores sociais e sobretudo políticos. Não se constrói diálogos e não se propaga união, na medida em que tenta anular o outro numa autoaprovação e autolegitimação. Já diriam alguns internautas, mimimi é tudo aquilo que não dói na gente. Portanto, o mínimo a se fazer às vezes, é, ao invés de tentar justificar os erros, ter humildade em enxergar o erro a partir da escuta do outro, que ganha, assim, um papel principal na história envolvida. Enquanto alguns cansam das reclamações ganharem esse papel de protagonismo chamando toda e qualquer exposição de dor de “vitimismo”, o oprimido não vai deixar de se colocar. No fim, é um querendo ganhar estrelismo do outro, quem protagoniza a situação, e estamos cansados de agentes autoritários quererem continuar sendo os protagonistas.

REFERÊNCIAS

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. 10. ed. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2007.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Tradução: João Paulo Monteiro; revisão de tradução: Newton Cunha. 9. ed. rev. atual. São Paulo: Editora Perspectiva LTDA., 2019. 285 p. v. Coleção Estudos. ISBN 978–85–273–1157–1.

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Amanda Annunziata

Historiadora da arte que ama entretenimento, ciências da natureza, línguas, música, literatura e filosofia — e cresceu assistindo animes.