Pausas visuais: possibilidades de reconexão e tranquilização perante a angústia gerada numa era de excesso de informação

Amanda Annunziata
9 min readOct 4, 2020

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Penso que todos os dias podemos nos sentir expostos e no sentimento quase automático de também expor. De certa forma, também podemos nos sentir inflamados perante tanta informação e excessos de imagem que parecem nos consumir cada dia, nos deixando ardentes, como depois de uma longa exposição ao sol. Porém, no caso, não perante o calor, mas talvez perante certos flagelamentos ácidos que possam ocorrer na intensa interação do nosso corpo com a atual demasia de informações e imagens. Acredito que muitos se sentem assim continuamente (consciente ou inconscientemente) perante a forma como estão se dando os excessos na humanidade, sobretudo os excessos que requerem grande demanda do nosso visual, nos deixando cansados e por vezes exaustos.

Não é sobre as imagens demandarem disponibilidade como numa conversa profunda, e sim sobre diversas imagens nos solicitarem o tempo inteiro a ponto disso poder se tonar problemático. Dedicar tempo a uma imagem pode ser uma experiência especial. Mas o que vem acontecendo é o tempo não dedicado a essa conversa única, e sim a um tempo contínuo solicitado por diversas imagens que não necessariamente escolhemos nos conectar. É uma certa invasão, diária e inflamatória, gerando sentimento de aprisionamento ou esmagamento de nossa identidade diante da demanda das inúmeras visualizações que nos sobrecarregam. Talvez inclusive nos sintamos diminuídos perante a agressividade dessa sobrecarga, ou até mesmo alguns podem chegar a se fundir com ela.

Parece que a relação com o tempo tem se tornado algo mais assustador do que tranquilizador diante dessa situação de excessos. É algo que pode ser simplesmente incômodo, já que não há como absorver simplesmente todo o conteúdo imposto ao nosso ser de toda produção dada hoje e muito menos se estabelecer profundas conexões com todas elas. Em um texto de Didi-Huberman sobre o tempo: “Diante do tempo” é tratada a relação de tempo existente entre o espectador e obra, principalmente envolvendo o campo de estudo das histórias das artes e algumas questões em torno delas. Aqui se comentará mais as reflexões geradas a partir de pequenas frases do texto do que o sentido total dele em si, fazendo uma ponte com inquietações a respeito do nosso momento digital da era dos smartphones.

Didi-Huberman coloca que estar diante da imagem é “como diante do vão de uma porta aberta”, o que culmina exatamente, para muitos, na angústia de não conseguir acessar todos esses vãos ou fazê-lo como deveria ou gostaria. Na verdade, nesta era digital é como se você não entrasse em nenhum vão exatamente, mas fosse tomado e consumido por todos eles que estão ao seu redor numa multiplicidade infinita. Para alguns, essa experiência pode ser tranquila, de forma a adentrar naqueles vãos que escolher e tentar o máximo possível caminhar sem prestar atenção nas outras inúmeras solicitações, porém, evidentemente isso tem se mostrado quase impossível em nossos dias, o que pode ser ou se tornar simplesmente desesperador.

É muito diferente de você estar caminhando num cenário limpo, em que aparece um vão aqui e outro ali para você se atentar e possivelmente se conectar. Na era digital principalmente dos smartphones é difícil ter esse controle. É exatamente isso, uma certa falta de controle, falta de sentir que está no controle. A potência daquela obra que pode conseguir lhe tirar desse sentimento pode se tornar uma verdadeira cura de tantas feridas e flagelamentos gerados pelo excesso de exposições visuais que possam nos deixar inflamados. De fato, é como se nós que estivéssemos expostas a elas e não o contrário.

Mesmo podendo ser salva por muitos e muitos anos, a imagem na era digital dos smartphones mostra como a falta de materialidade e principalmente sua função rápida e líquida nas redes sociais nos revelam problemáticas no que diz respeito a multiplicidade. Esses diversos vãos também podem representar nada mais que imagens que se repetem inúmeras vezes, o que também pode despertar certo desinteresse em se adentrar profundamente em cada um, já que é provável que se encontre algo já visto inúmeras outras vezes e num contexto líquido.

Impor-nos respeito e nos fazer parar pode ser realmente uma característica da imagem como coloca Didi-Huberman, porém o que estamos vendo atualmente parece justamente o contrário. Muitas vezes queremos correr das imagens e do tanto de informação que possam nelas conter, e isso é completamente compreensível perante todo o contexto comentado acima. Quem não iria querer sair correndo desses infinitos e inúmeros vãos abertos que nos solicitam sem controle? Porém, nisso, algo que pode ser difícil é encontrar realmente vontade, coragem e pausa para se conectar com um desses vãos, o que de certa forma pode ser uma pena. Pode acontecer de uma imagem ser algo que toque profundamente alguém por alguma caraterística única dada somente na relação daquela imagem com aquela pessoa, fora de intenções curatoriais, históricas ou artísticas que possam conter na imagem; é a própria autonomia dela, o que ela solicita do espectador e que pode ter grande necessidade de “repousar o olhar”, mas pode acabar acontecendo dessa oportunidade passar perante essa inconsciente ou consciente fuga das imagens.

O central é então pensar que esses momentos de pouca atenção para a imagem não ocorrem somente porque estamos sendo condicionados a tomar o tempo e as relações de forma líquida (BAUMAN, 2001), e isso repercutir também na nossa relação com as imagens, mas talvez também porque de certa forma tenhamos querido fugir delas.

Daniel Senise, Encyclopaedia Britannica , da série Printed matter, 2017. Disponível em: https://ocula.com/art-galleries/galeria-nara-roesler/exhibitions/printed-matter/
Perfil do instagram @pause.pausa. Acervo pessoal.

Ao observar a obra de Daniel Senise percebo de cara uma similaridade com minha experimentação de perfil do instagram @pause.pausa. A palavra exposição sendo constante na história da arte me faz pensar em como ela pode ser usada, repensada e remontada de diversas formas. A informação presente nas exposições já pode ser demasiada, mas as informações que vêm sem querermos que adentrem ao nosso espaço pode ser algo ainda mais complexo e difícil de lidar. A informação não está mais na biblioteca ou nas exposições simplesmente, mas em tudo e em todos os lugares. Ao invés de irmos até ela, ela pode vir sem nossa vontade (as redes sociais mostram bem isso), e então se percebe aí uma privação de liberdade. A informação fica presente em nossas mãos em um dispositivo que fica ligado 24 horas (todas essas inquietações também têm direta relação com a minha experiência de dois meses sem celular), e isso com certeza afeta nossa relação com as obras de arte, imagens no geral. As diversas possibilidades podem ser tranquilizadoras. Mas sem um controle podem ser perturbadoras.

A serenidade e cura diante dessas inflamações podem vir simplesmente na calmaria dos olhos e do corpo. A obra de Daniel me suscita certa calmaria, tranquilidade. Não tem nenhuma informação que precise desvendar. Está tudo ali. Ou não tem nada ali. Um momento de paz, olhando para quadros quase completamente brancos, em que se suscita mais, na verdade, percepção e escuta de minhas próprias emoções, corpo e mente. Os pequenos elementos escuros levemente desordenados nos quadros brancos também me remetem certa delicadeza, ainda que não seja exatamente delicado. Há algo de terno ainda que não exatamente explícito. A geometria da obra também traz uma certa sensação de organização e ordem.

A obra me traz à lembrança também janelinhas de prédios. Talvez porque seja uma visão tão recorrente para moradores de metrópoles, principalmente neste momento de quarentena. Uma mesma paisagem, ao dormir e acordar. Os quadros praticamente em branco nos mostram possibilidades, principalmente que possam estar dentro de nós e do nosso imaginário. É calma e também pausa. Talvez olhar para janelas de prédios todos os dias também tenha nos feito refletir e repensar as possibilidades, principalmente no cenário que estamos.

Perante tantos vãos abertos nos atacando e nos consumindo diariamente, muitas vezes queremos olhar para o nada. Não que a obra de Daniel não seja imagem. Mas há uma certa relação de pausa para nossos olhos e mente. Apesar de recorrentemente querermos espetáculos, também há uma demanda e necessidade de calmaria e tranquilidade, organização e limpeza do exterior e do interior para então deslumbrar esses eventos que escolhemos com extrema imersão, alegria e conexão. Aliás o espetáculo é buscado por aquele que o adere, não é algo simplesmente bombardeado e multiplicado como acontece com as informações nas eras dos smartphones. É algo espacial e presente e que não tem necessariamente um caráter explicitamente informativo. Aliás, muitas vezes as exposições de arte se tornam mais espaços informativos que artísticos de fato, e isso também pode vir a se tornar uma crítica.

Bom, é válido dizer que o repouso do olhar de forma a trazer conforto, pausa e cura não necessariamente ocorrem apenas com obras como a de Daniel. Acho que toda imagem pode vir a gerar conforto, cura e calmaria em alguém (dependendo da obra e da pessoa), ainda que possa gerar também confronto. Aliás, acho que é exatamente sobre isso. Na verdade, precisamos de tempos de pausa (e acho que muitas vezes a reconexão com a natureza e lembrança da nossa condição humana pode ser um meio de encontrar esse conforto e tranquilidade). Não é um problema as diversas manifestações artísticas e imagéticas que temos hoje. É só importante não se deixar levar ser consumido o todo o tempo por tudo sem nenhum tipo de filtro, lembrar-se da pausa e os repousos do olhar. Escolher o que quer realmente repousar seu olhar, se permitir e adentrar, mergulhar. É justamente isso que o perfil @pause.pausa propõe, um momento de pausa visual no rolamento da página inicial do instagram das pessoas para justamente depois virem a repousar seus olhares às imagens com mais calmaria e profundidade — apesar de o aplicativo e o sistema de redes sociais e smartphones não colaborarem muito com essa ideia.

De certa forma, as publicações do perfil também podem despertar a lembrança de quem as vê de simplesmente fazer uma pequena pausa geral, não só visual. Acredito que de alguma forma isso (esse perfil do instagram e outras propostas artísticas que possam sugerir pausas visuais) possa contribuir gradualmente para relacionamentos com as imagens de maneira mais singular e visceral e como também um espaço de inquietação num sentido construtivo e bom. Um espaço não de aprisionamento e angústia, e sim de possível cura e libertação. Talvez essas limpezas mentais, visuais, possam gerar posteriormente um interesse mais intenso com cada imagem e não fuga delas, de forma a deixar-se levar a enxergar cada detalhe de criação e o que possa suscitar dentro de nós. Afinal as pausas nada mais são que momentos de escuta, e essa escuta pode ser tanto em relação aos nossos corpos, mente, emoções, sentimentos como também em relação às imagens, em relação à arte.

Observações:

1. Fiquei pensando que essa “fuga” das imagens também pode ser um querer fugir, de certa forma, da demanda de tempo surgida ao entrar num desses vãos (num certo temor existente em não estar utilizando o tempo para a produtividade capitalista), ou de fugir de introspecções, interioridades e verdades que possamos encontrar neles. Mas na obra de Daniel talvez essas profundidades possam até ser maiores, já que diante do silencio encontramos as verdades e emoções mais profundas do nosso ser.

2. Quando falo da quantidade de informação que pode ter na obra, também fico pensando que essa fuga possa surgir das diversas camadas que possam estar envolvidas no sentimento de intimidação causado na relação do espectador com a obra de arte, por não saber o que alguma delas possam significar ou enfim, a velha história da arte elitizada ou simplesmente idealizada. Nas redes sociais não tem essa relação e isso pode ser bom, mas ao mesmo tempo pode ser uma relação líquida. Acredito que a intimidação é ótima num sentido de se impor a nós, mas não no sentido elitista que pode ocorrer em torno da arte no que diz respeito a “não ter conhecimento suficiente”. Apesar de querermos fugir muitas vezes da idealização em relação à arte e imagem pode ser complicado pensarmos nas relações em que estas não nos impõem respeito como coloca Didi-Huberman, o que talvez se encaixe nesse sentido de relações líquidas com as imagens nas redes sociais atualmente (diferentemente de respeito no sentido de seriedade, que para mim não faz sentido).

3. Quando trago do meu imaginário o “se fundir” no segundo parágrafo seria como uma diminuição de nossas capacidades humanas por nos sentirmos tão esmagados por essa sobrecarga de informação a ponto de quase nos fundirmos com ela e, de certa forma, isso pode acabar acontecendo principalmente por sermos também veículos de transmissão desses inúmeros vãos múltiplos e infinitos, e também porque essa nossa exposição às imagens e não o contrário é reforçada quando também expomos outras pessoas e essas nos expõem. Também pode ter outros significados que talvez não tenha conseguido trazer completamente em palavras. Eu visualizei tudo isso mentalmente como se fosse uma pintura ou vídeo. Espero que tenha conseguido chegar perto dessa visualização através das palavras.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo. História da arte e anacronismo das imagens. Trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. Disponível em <https://revistapolichinelo.blogspot.com/2011/03/georges-didihuberman.html>.

SENISE, Daniel. Printed Matter. Nova Iorque, 2017. OCULA. Disponível em: https://ocula.com/art-galleries/galeria-nara-roesler/exhibitions/printed-matter/. Acesso em: 8 set. 2020.

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Amanda Annunziata

Historiadora da arte que ama entretenimento, ciências da natureza, línguas, música, literatura e filosofia — e cresceu assistindo animes.