Uma breve desmistificação das Histórias das Artes

Amanda Annunziata
41 min readJun 24, 2020

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Por Amanda Annunciato Lara Silva

Em decorrência dos muitos momentos em minha formação como historiadora da arte, em que surgiram questões a mim de diferentes pessoas, ligadas à área ou não, como “Isso é arte?” “Esse quadro vale 1 milhão de dólares?” “Ah, mas vai falar pra mim que isso é arte?” “Vai trabalhar com o quê?” “A História da Arte são aqueles quadros bonitos né, de museu?”, “Mas filme de super herói não é arte, é?” “Você que estuda História da Arte ia adorar conhecer tal país europeu, né?”, entre outras, venho por meio deste texto, como estudante já veterana (aproveitando a finalidade do mesmo para entrega de uma matéria do primeiro ano), falar sobre História da Arte. Gostaria de ressaltar que não deslegitimo nenhuma das questões aqui citadas. São todas muito válidas, e por isso serão tratadas aqui, pois justamente nos revelam que podem necessitar de compreensão mútua.

Bom, acho que, na verdade, talvez essa matéria, “Introdução à História da Arte” — obrigatória no primeiro ano de graduação em História da Arte na UNIFESP — pudesse aparecer propositalmente, de fato, no final da graduação. Ou em duas partes, de repente com nomes diferentes, de forma a propor falar e refletir sobre história da arte e seus conceitos em construção e desconstrução – apesar de se fazer isso, direta ou indiretamente, durante todo o curso – em dois períodos diferentes, com esse grande intervalo. É uma pergunta muito importante para fazermos à nós mesmos, estudantes ou não, o que é história da arte, como ela nos é formulada, falada, tratada, construída, desconstruída, dentro e fora da academia. Bem sobre como desempenhamos nossos papéis de ofício dentro e fora dela. Sobretudo, fora. Muitas vezes somos condicionados a usar nossos conhecimentos somente dentro da academia e para ela. Mas há muitas outras possibilidades. E como aproveitá-las? Ou como deveríamos exigir ou propor mais do mercado de trabalho, ou reinventá-lo? Reinventar-nos?

Acho que esse texto serve como também um desabafo e, de certa forma, também uma fonte para talvez futuros estudantes ou pessoas em geral que tenham interesse em entender um pouquinho mais sobre a história da arte e o que ela pode ser e tem sido no Brasil, a partir de uma perspectiva de uma estudante do quinto ano. Esse texto é acadêmico e vai ser escrito em 1ª pessoa, sim, porque já começando com esta crítica, a academia precisa abranger mais formas de manifestações textuais diversas, incentivando uma escrita autoral de verdade. Tantos mais poderiam se revelar escritores e escritoras geniais em suas diversas maneiras de tratar e elaborar um texto, independentemente do assunto ou tema, com maior liberdade de criação por parte de seu repertório – citando, claro, quando convir (uma das conquistas do nosso curso foi passar a aceitar uma produção artística como trabalho de conclusão de curso, ainda que com texto reflexivo obrigatório em conjunto).

Essa escolha se deve também ao apelo mais pessoal deste texto, com experiências pessoais relacionadas às questões aqui colocadas (sem exposição de nomes, claro). Tudo isso, ligada às recentes leituras “Introdução à História da Arte”, de Dana Arnold, e “O Valor da Obra de Arte”, de Ana Letícia Fialho e Angélica De Moraes, um dossiê com textos delas e de Alain Quemin, com entrevistas com Cildo Meireles, João Carlos de Figueiredo Ferraz, Luisa Strina e Tadeu Chiarelli. Entre outras leituras que foram ocorrendo no decorrer da escrita deste texto. Ótimas leituras, mas, nem sempre vou embasar questões somente em textos acadêmicos. Mas citações aparecerão sim, com certeza. Afinal isso faz parte da formação, e esses livros, em especial, me instigaram mais ainda a escrever este texto. Especialmente, o livro de Dana Arnold.

Bom, vamos começar com uma das primeiras questões então, uma das mais clássicas: “Vai trabalhar com o que?”. Olha, está aí uma coisa que a gente (estudante) também gostaria de saber. Brincadeiras à parte (ou não), não é muito comum você ouvir por aí alguém dizendo que cursa História da Arte no Brasil. Isso porque o curso se estreou como graduação em 2009, em apenas 4 instituições públicas (federais) e duas particulares (que ora têm seus cursos ativados, ora desativados). Além disso, só se entra no curso até 50 alunos por ano no Estado de São Paulo por universidades públicas, no caso, a única, minha universidade, a Universidade Federal de São Paulo. Por conta disso, o curso é recente e não se ouve falar muito sobre ele (mas é compreensível, visto a quantidade de pessoas que se formam por ano versus a quantidade de vagas que o mercado pode oferecer). Há pouco entendimento em relação a área de conhecimento e área de atuação, o que torna, às vezes, isso um pouco confuso e nebuloso até para quem está no curso, porque, primeiramente, aliás, há uma prévia ideia do que é História da Arte no Brasil baseada numa narrativa eurocêntrica, sobretudo. Mas o que é História da Arte no nosso país? Como lidamos ou podemos lidar com a construção em torno do que é História da Arte aqui, para nós? Como desempenharemos nossos papeis profissionais aqui, com base no que estudamos e nos papéis que queremos desempenhar? Quanto achamos que devemos receber e quanto acham que devem nos pagar por isso? Em que tipos de lugares?

Ainda se há uma ideia da “história da arte tradicional” - aquela, contada por movimentos de vanguarda, pinturas enormes em grandes museus internacionais europeus, valorizando sobretudo uma história contada por homens brancos – como História da Arte como um todo. Mas não é bem assim. O nosso curso, por exemplo, também pode ser chamado de Estudos Visuais. E o que isso significa? Significa que temos a capacidade de discernir, criticar, analisar, todo e qualquer tipo de imagem, vindo elas da propaganda, fotografia, filmes, pinturas, artes plásticas no geral. Somos capacitados a realizar curadorias em museus, galerias, eventos; seguir carreira acadêmica como pesquisadores, críticos (de qualquer arte/produção, visual ou não), educadores de museus, produtores culturais; trabalhar com descrição, datação, atribuição e catalogação de obras; realizar perícia na verificação e validação de informações atribuídas a obras de arte; trabalhar na secretaria da cultura; sermos jornalistas culturais, produtores culturais, entre outras diversas funções mais. Mas o mercado precisa entender as múltiplas funções que podemos exercer, e que um outro nome que poderia ser dado a esse curso talvez fosse “ciência da imagem”. Somos capacitados a sermos, de certa forma, cientistas da imagem. E o que mais somos condicionados a consumir, exacerbadamente, em todo o mundo, hoje, é imagem – ainda que sem muito conhecimento dos efeitos desse exagero no momento, mesmo que seja a partir de uma construção vinda já de muito tempo. Então acredito que é um conhecimento de extrema relevância e que anda sendo procurado ainda mais perante essa crescente de produção e recepção de imagens, e provavelmente também poderá ser muito procurado futuramente, visto a preocupação dos efeitos desse fenômeno causado sobretudo pela era dos smartphones.

E o que isso significa também? Que gostaríamos que entendessem melhor isso e nos dessem mais oportunidades em empresas de entretenimento como em canais de tv, companhias de circo, teatro, shows, estúdios de animação, produtoras de filmes; agências de publicidade... Para além dos museus e galerias, que hoje, nos recebem em maior parte e costumam gostar de nosso currículo estudantil e profissional. Porém, é complexo. Toda uma graduação a respeito da construção do olhar do ser humano sobre a imagem, sobre conceitos de arte de diversas perspectivas e ganhar menos de um salário mínimo como estagiário (30 horas semanais) trabalhando finais de semana intercalados com 15 minutos de pausa por dia é um pouco complicado, né? Fora a formação dentro do museu no educativo, que poucas instituições levam à sério, normalmente sendo realizada de forma superficial e líquida para logo agilizar atendimento a grupos escolares, podendo deixar o estagiário um tanto despreparado.

A questão do “a gente também queria saber” diz respeito à problemática de somente a função de educativo ser associada como estágio para o historiador da arte no Brasil, tornando a capacitação e aprendizado profissional um pouco limitados perante funções às quais o estudante de História da Arte poderia e gostaria de exercer. Talvez encontre alguma oportunidade também em galerias, bibliotecas ou no máximo editoras. E olhe lá. Não se dão muitas oportunidades a nós além dessas, muitas vezes pagando muito mal, sem muitos benefícios, trabalhando muito e com uma concorrência acirrada.

Isso tudo vem, também, de uma longa desvalorização do profissional das humanidades, das artes, e da desvalorização de sua formação. O que será que um historiador da arte pode atribuir no seu negócio? Olha... você pode se surpreender com essa resposta. Diversas vezes nós, cientistas da ciências humanas, nos sentimos testados a respeito da legitimidade de nossos conhecimentos, ocorrendo inclusive, muitas vezes, deslegitimações de nossas falas (em nossas vidas pessoais e na História), por toda uma forma com que somos educados a valorizar principalmente e somente algumas profissões e conhecimentos em nossa sociedade (e para ajudar, numa era em que você tem que concorrer com as fake news sendo tomadas como verdade, e ainda, para alguns dando sentimento de legitimação a partir delas – como se o conhecimento sobre algo só fosse verdade quando convém). Aí vamos a segunda questão: “Ah, mas vai falar que isso é arte?”

Não é incomum duvidar da resposta de um profissional das humanidades para algumas pessoas. É como se longos anos de estudos e leituras, evidências que coletamos não valessem nada em alguns momentos. Muitas vezes sua análise é vista como uma opinião que possa ser comparada a qualquer outra, com o risco ainda dessa qualquer outra querer se legitimar acima à do especialista. Novamente: análise, não opinião. Para um breve esclarecimento, opinião é quando alguém diz: “Acho esse sapato estranho”. Uma análise, que se baseia em estudos minuciosos, evidências, fatos, argumentos, num exemplo mais trivial, seria algo como: “Esse sapato, que, ao se comparar a outros modelos de sapatos femininos da coleção primavera-verão 2020, se diferencia por trazer tons frios ao invés de tons quentes e vibrantes associados a quase todos os outros de sua coleção. Dessa forma, pode-se considera-lo diferente do que seria seus semelhantes.”

Ao longo de toda a formação, contínua e constante, arte é um conceito questionado, questionável, em muitos sentidos, situações, momentos diferentes da história do mundo e de cada pessoa. É um assunto profundo, complexo, que nem todo mundo está disposto a ouvir ou falar em dois minutos de conversa. Para mim, arte é relativo e sempre vai ser, porque, para mim, ela tem relação direta com o artista e espectador, não anulando nenhum dos dois. É expressão. Expressões podem tocar, se tocar, atingir, emocionar... ou não. Arte normalmente é associada àquilo que emociona e, o que emociona para mim, pode não emocionar para você. Se não faz sentido para você, pode fazer para alguém. Mas veja, esse “emocionar” pode ser causa das mais diversas emoções: raiva, provocação, contemplação, tristeza, desprezo, doçura, horror, mas ela pode atingir, qualquer pessoa. E essa pessoa vai sentir se aquilo a atingiu ou não. Mas arte atinge – claro, fica um pouquinho complicado desconsiderar nessa jogada, o fato de que aquela expressão ter sido produzida ou não com a intenção de ser chamada de arte. Mas isso talvez seja conversa para outro momento.

A principal questão nisso é que não há como negar como somos condicionados a relacionar a arte com a forma como a chamada “História” com “H” maiúsculo nos é contada, gerando uma expectativa de que sempre haverá um sentido de progresso nas produções artísticas ao longo dos anos, como diz Dana Arnold em seu livro, escrito em 2004:

“... o estilo desempenhou um papel significativo na formulação de histórias da arte, e só recentemente a noção de progresso estilístico na arte ocidental tem sido reavaliada. Na verdade, a ênfase no estilo nos leva a esperar a noção de progressão e constante desenvolvimento na arte. Se desejarmos que a arte seja representação do mundo que pensamos ver, então podemos impor uma expectativa de contínuo movimento em direção ao naturalismo. Mas, se é assim, o que pensar da arte que não está interessada na representação naturalista? A arte do tipo abstrata ou conceitual pode ser menosprezada e considerada de importância secundária – algumas vezes rotulada de arte “primitiva” ou “ingênua”, com ar pejorativo. A arte moderna, de muitas maneiras, confronta esse preconceito, mas com frequência provoca reações como “isso é arte?”” (ARNOLD, 2008, p. 19).

De fato, a arte moderna sofreu muitos preconceitos e quebrou muitos estigmas sobre o que é arte. Hoje em dia, a arte moderna se tornou mais “aceita” como “arte”, se tornando a questão mais feita agora: “arte contemporânea é arte?” pelos mesmos motivos citados pela autora, acima.

Progresso? Mas o que seria progresso na arte? Naturalismo é progresso? Existe mesmo como pensar arte de maneira progressiva? Essas visões na forma de se pensar História, que normalmente nos é contada de forma progressiva – tantas vezes, colocada em cima da arte – trazem diversas questões e problemáticas. Nota-se: “em cima da arte”. Exatamente isso. A forma como nos é contada a história e a história da arte pode chegar a invadir o espaço de relação pura e simples entre um espectador e a obra, pela série de significados que tentam ser colocados à arte antes mesmo do seu estado de ser em si:

“Chegamos então à segunda pergunta: de que ponto de vista fazemos história? Isso significa que devemos tomar consciência do modo como guardamos as obras de arte, um modo profundamente condicionado pelos instrumentos e valores. Hoje não podemos fugir a nosso tempo, não podemos nos valer de uma percepção não condicionada, daquilo que se pode chamar um olhar “ingênuo”, não podemos observar uma obra sem ser influenciados ou predispostos de algum modo por nossa cultura, pelas categorias que utilizamos.” (CASTELNUOVO, 2006, p. 143).

Nós temos constantemente a frequência e necessidade, a vontade, de colocar tudo (conhecimento no geral) em categorias; de classificar, de pôr em nichos. De certa forma, muitas vezes isso pode auxiliar a organizar o pensamento, mas nem sempre essa deve ser a maior preocupação. Aliás, acho que muito pelo contrário. Tantas vezes essa preocupação pode dificultar a compreensão do que pode não estar em prévias categorias existentes em nossas mentes (o que frequentemente acontece ao se deparar com algo novo ou algo diferente de ideias culturais pré-estabelecidas), ou de simplesmente enxergar algo puramente pelo que é, como se muitas vezes tivessem névoas dificultando a visualização do que deva ou possa ser visto.

Frequentemente deixamos de colocar a arte como quesito central para nos guiar, fazendo-nos esquecer de contar a história da arte pela própria arte em si, colocando diversas outras questões sobre ela:

“É importante discutir o tipo de arquivo do qual a história da arte deve lançar mão, uma vez que o âmbito do material usado na construção dessas histórias ultrapassa as próprias obras de arte. Por exemplo: a história tem seus documentos, registros escritos do passado; a arqueologia se concentra nos registros materiais, vestígios físicos de tempos anteriores. A antropologia estuda rituais sociais e práticas culturais como meio para entender os povos do passado e presente. A história da arte pode recorrer a todos esses arquivos em adição ao arquivo primário que é a obra de arte.” (ARNOLD, 2008, p.21).

Mas é importante lembrar de colocar a própria obra como o estudo em si:

“Há, então, uma distinção a ser feita entre a interação da arte com a história, e a história da arte? Ou seja, as histórias da arte podem ter um foco único no estilo ou na obra em relação à biografia do artista, enquanto nossas expectativas de uma história progressiva são impostas ao visual. O que sugiro aqui é que se inverta completamente a questão e se coloque a arte, por assim dizer, no banco do motorista. Ao utilizarmos a arte como nosso ponto de partida, podemos perceber as complexas e intrincadas tramas que constituem a história da arte. Isso implica que a história da arte é um legítimo assunto ou campo acadêmico de investigação por si só, muito mais do que o resultado de regras de uma disciplina aplicada a outra.” (ARNOLD, 2008, p. 21).

Voltando à questão da arte contemporânea, e ainda ligada a tudo que se é construído antes do espectador chegar à obra, há a questão do gosto, simplesmente. Você não é obrigado a gostar de uma obra de arte. O que leva a outra questão, ainda sobre história da arte tradicional e tudo que já se disse até agora, sobre as grandes pinturas em museus internacionais, boa parte em países europeus: a intimidação a apreciar “clássicos”. Você não precisa se sentir tocado por uma obra clássica, assim como você não precisa se sentir tocado por arte contemporânea, nem ter um vasto conhecimento sobre elas:

“(...) é importante pensar na dimensão social do gosto como algo que tem mais a ver com a arte como um processo de exclusão social - tendemos a nos sentir intimidados quando não sabemos quem é o artista, ou, pior ainda, quando não nos sentimos emocionalmente tocados pelo “primor” da obra.” (ARNOLD, 2008, p. 17).

“A relação entre gosto e atitudes estéticas dos clientes e dos vários públicos, de um lado, e características da produção artística, de outro, é extremamente complexa e não decerto unívoca, requerendo que vários fatores sejam levados em conta e que seja feita uma série de controles em vários níveis para evitar explicações muito deterministas ou completamente circulares. (...) Em realidade, as obras de arte têm muitos valores que podem ser estéticos, mas também culturais, sociais, políticos, e é tarefa do historiador da arte lê-las em sua complexidade. As imagens foram usadas como meio de dominação simbólico, como objetos de culto, instrumentos de distinção social, fonte de prazer estético e assim por diante, foram admiradas e detestadas, protegidas e destruídas (os grandes episódios de iconoclastia recorrentes na história bem o mostram), foram copiadas, esquecidas, vendidas, roubadas. São histórias, todas, a serem seguidas para que se possam perceber as várias facetas de uma obra de arte e, em seus vários aspectos, a história das obras de arte não é uma história idílica, mas uma história de contrastes, de conflitos, de hegemonias, de espoliações, de imposições, de ocultamentos e periferizações como todas as histórias do homem” (CASTELNUOVO, 2006, p.142 e 143).

Pensando nessa citação de Castelnuovo, que na verdade colocam-se outros contrapontos também, lembra-se de uma questão muito importante: o historiador da arte como historiador da cultura. Mas já voltamos neste tópico. Apenas considero válido pontuar que não necessariamente o conhecimento de toda essa trama é necessário para apreciar uma obra de arte, apesar de ser um exercício muito interessante pensar e estudar sobre essas múltiplas possibilidades.

A História da Arte não está somente nos museus internacionais europeus. Ela está – e não necessariamente em museus — em Angola, no México, no Brasil, no Japão, na China, na Índia, em Israel, na Palestina, nas comunidades ameríndias, aborígenes australianas (apesar de a palavra “arte” nem sempre estar presente nessas comunidades, ou no significado “ocidental” que temos dela – aliás, alguns acham um equívoco aplicá-las nesses contextos). A gente precisa desmistificar a arte contada como progressão de estilos que normalmente é centralizada na Europa. Precisamos desconstruir, decolonizar essa ideia, além também da ideia dos grandes gênios, “magos” (CASTELNUOVO, 2006, p. 127). Desmistificar que não necessariamente arte são grandes quadros em museus. É preciso desinstitucionalizar a arte, vinculada normalmente a ideia do que está mais comumente em espaços de museus e/ou outras instituições culturais (apesar de, na visão de alguns, também poderem ser ambientes de decolonização, ainda que haja certas controvérsias). Arte está presente em objetos, locais das mais variadas formas, sentidos, cores, cheiros, sons e gostos. E justamente por essa história da arte contada pela progressão estilística ligada a Europa – que automaticamente se associa a pintura, escultura e arquitetura – que recorrentemente nos perguntamos se pode ser chamado de arte tudo que possa ser diferente do que provém dessa ideia colonizada e “ocidentalizada” de arte, já que se fixou e limitou o significado de “arte” com direta ligação a esse nicho, como se fosse algo “natural”. Afinal, já há um processo e expectativa sobre o que é arte na mente de muitas pessoas com base nessa forma reduzida de contar sobre toda a expressividade artística humana no mundo ao longo de séculos.

Existe toda uma filosofia da arte e estética (todo um ramo de estudo, aliás, que inclusive temos como unidade curricular em nosso curso), que fala muito sobre nosso olhar perante a imagem e também a própria autonomia da imagem. Este tema não será colocado em pauta neste texto com toda a atenção que merece, mas deixo pontuado aqui muita consideração a respeito desse tema porque significa muito para ampliar nossas percepções acerca do nosso olhar perante as imagens, que vão para além da nossa simples noção de “gosto”. Mas, sim, você pode simplesmente gostar ou não gostar:

“Entretanto, por essas definições, o gosto é determinado tanto por aspectos culturais quanto sociais, de modo que o que é considerado esteticamente “bom” e socialmente “aceitável” difere de uma cultura ou sociedade para outra. O fato de o nosso gosto ser determinado culturalmente é algo de que temos de estar conscientes” (ARNOLD, 2008, p. 17).

Portanto, não se preocupe quanto a achar que deva gostar, apreciar, ou saber de uma obra de arte. Mas lembre-se, ela pode continuar sendo arte independentemente disso.

Há sim uma questão, como já visto, de dar primor aos clássicos e aceitar tudo que especialistas dizem. Mas a perícia, a descrição artística, não é um fim em si da experiência com a obra de arte. Há muitas camadas sobre o que faz você sentir perante uma obra. “A apreciação da arte também pode envolver o processo mais exigente de crítica do objeto artístico” (ARNOLD, 2008, p. 16). Sim, há pessoas que contam com uma gama de informações e conhecimentos que vem junto ao significado daquela obra, e isso vale muito para elas, e há pessoas que vão apreciar a obra simplesmente pelo prazer dos sentidos, apenas no presente momento com a obra. Não há certo nem errado quanto a isso. Mas é muito importante essa questão – nem mesmo nós, estudantes de arte, devemos nos esquecer disso: Permita-se sentir a obra. E nem sempre você vai saber detalhes sobre todas as obras e artistas do mundo, e está tudo bem. Não se deixe levar sem dar a oportunidade da pura experiência com a obra.

“(...) essa satisfação em detalhar o que está diante de nós continua a ser predominantemente um privilégio da apreciação da arte. (...) Pode ser que esses processos sejam parte necessária da análise, mas não são um fim em si. Do mesmo modo, não devemos aceitar a descrição de uma obra de arte como a finalidade do processo de seu estudo” (ARNOLD, 2008, p. 25).

O estudo de história da arte, a perícia em arte muitas vezes gera um vocabulário próprio, uma maneira particular de transformar em palavras o que se vê, e é um trabalho muito admirável, difícil e complexo. Exige muitas habilidades e estudo por parte do especialista, que vão desde uma perícia geral de determinada época e local ou até mesmo perícia em somente um quadro de um único artista (normalmente associada a longos estudos iconográficos). De fato, esses profissionais devem ser valorizados. Mas não deixe de se permitir à arte por se sentir intimidado por isso. Arte é para todas e todos:

“O professor, como toda pessoa convidada a falar sobre arte, depara-se certamente com um grande obstáculo: não levando em conta a poesia, a arte é de fato o gênio mudo que constrói, esculpe e pinta; ela é o não-dito por excelência, aquela que vive pela forma e pelo som, porque não pode viver pela palavra. É porque jamais se poderá traduzir em palavras o verdadeiro mistério de uma bora de arte, e também porque mesmo as análises mais perfeitas deixarão ainda mais insondável o sentido profundo da arte, que todos os comentários permanecerão mais ou menos sem valor. É uma vã pretensão querer traduzir essas noções pela “ideia de obra de arte”. As pesquisas e a especulação permitem delinear cada dia mais os segredos da natureza; os da arte, jamais” (BURCKHARDT, 1874, p. 182).

Sim, lidamos muitas vezes com esse complexo, de arte ser intraduzível em palavras, e ao mesmo tempo tentarmos lidar com ela da melhor maneira a partir também de nossas formas de expressividade, sendo uma delas, as palavras. Mas aí, retomamos a questão que sua descrição é um dos meios de seus estudos, e não um fim em si. A História da Arte recorre a diversos meios para estudo da arte, e, ainda sim, apesar de chegar muito perto, dificilmente se exprimem completamente todos os mistérios em torno de uma obra e as experiências que a geraram ou foram geradas por ela. Mas o mais feliz é poder ter a possibilidade de chegar perto disso. Talvez o maior de todos mistérios apenas seja revelado nos nossos simples, humildes, ingênuos e puros momentos com ela.

A centelha criadora humana é fascinante. Ou vezes perturbadora. É interessante pensarmos em como podemos estudá-la, pensar sobre ela e até mesmo pensar outras formas melhores de usar essa centelha – em nossa sociedade, não nos damos conta como somos criadores de tudo à nossa volta; se nos atentássemos mais ao papel da criação individual e seus perigos, ou seus milagres, poderíamos pensar melhor numa construção e transformação de fato da sociedade, de dentro para fora – sendo a arte um dos meios para sua compreensão, tão íntima da expressividade e criação humana. Esses momentos individuais com a obra são muito importantes para captar dela justamente a pura e simples expressividade do ser humano que a fez, ou dela por si só.

“É raro o dom perfeito e equilibrado que assegura uma compreensão profunda e plural da arte; o que cada um retém melhor e como o faz é um assunto individual. As principais condições preliminares são as seguintes: não se abandonar cegamente ao mundo das intenções, mas, permanecer aberto ao conhecimento objetivo das coisas, quer dizer, não ser um sujeito comum. Não estar preocupado com outras coisas na contemplação da arte, pois o olho correria o risco de sobrevoar as maiores criações prestando apenas uma atenção restrita. Não considerar a arte como um simples deleite; uma vez ao menos, no curso da existência, a arte deve ser mais do que isso, mesmo que depois ela se torne diversão. A arte não se contenta apenas com um simples resíduo de tempo e força. Um castigo espera aqueles que aspiram deter-se apenas uma vez: eles passarão ao largo do melhor e se cansarão muito rapidamente. E não falemos daqueles que, por simples falso pudor ou porque a arte faz parte da cultura geral, percorrem servilmente as galerias e suspiram em segredo. É um caminho bem mais judicioso que empreendem aqueles que olham apenas algumas obras, porém atentamente e em detalhe; estes serão talvez recompensados por uma relação mais íntima com a obra de arte e aprenderão sem livros a conversar com elas em uma linguagem resolutamente individual”. (BURCKHARDT, 1874, p. 184)

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Ligado a isso, falemos sobre o cânone:

“o cânone é a obra de arte tida como da mais alta qualidade por indivíduos influentes – em especial os conhecedores de arte. Na história da arte o cânone costuma ser associado, mas não exclusivamente, aos valores “tradicionais” da arte. Nesse aspecto, o cânone desempenha um importante papel na institucionalização da arte, uma vez que novas obras podem ser consideradas em contraposição a ele. Trata-se de um meio de impor relações hierárquicas a grupos de objetos. Essa hierarquia em geral favorece o gênio individual e a ideia de “obra-prima” (ARNOLD, 2008, p. 21 e 22).

Aqui se traz bem à tona a questão da autoria, do gênio, que faz com que olhemos mais para algumas das histórias da arte do que outras, para alguns artistas ao invés de outros, ao mesmo tempo que o cânone suscita suas oposições, gerando outras formas de arte e possíveis outros cânones. Mas é importante não nos limitarmos a ideia de cânone como sentido de arte ápice, reduzindo outras.

Pensando sobre cânone, há também uma questão de ligá-lo a tecnicidade – como se pudesse medir a “qualidade” de uma obra de arte pela sua técnica – ao apreciar uma obra. Mas acho que já entendemos melhor os motivos de apreciarmos tanto obras clássicas, ainda que inconscientemente. Por acaso já tiveram algo sobre Artes das Áfricas na escola, ou já ouviu falar sobre? Só de saber que a cultura entre países no continente africano é completamente diferente e que não são como um único país “África” – que na verdade seria o mínimo – já seria grande descoberta para algumas pessoas (mas não as culpo por isso; afinal, é um problema estrutural). Não diminuindo-as, mas diminuindo a história colonizadora que somos condicionados a sempre contar, sempre nos guiar como narrativa central.

Há muita coisa linda na arte clássica, mas é importante não desconsiderar tudo que não se remete a ela: “Mas o termo “clássico” também tem conotação de apogeu ou de exemplo exponencial que se ajusta a um estilo escrito e refinado e tem uma qualidade que desafia o tempo. A associação da arte da época clássica com esse juízo de valor lança a ideia de que ‘clássico’ é melhor” (ARNOLD, 2008, p. 37), e adivinha? A maioria da arte considerada “clássica”, branca, europeia, de alguma forma, ora de forma mais íntima, ora menos, remete ao naturalismo, quando consideramos, por exemplo, obras greco-romanas. Para se ter uma ideia, Arnold cita em seu livro que no Renascimento o Papa Júlio II pediu uma obra secular para “dar início à sua coleção de esculturas” no Vaticano, de tanto que a arte grega e suas representações, sobretudo romanas, foram tão aceitas e denotadas como um apogeu da história da arte, podendo serem até mesmo “consideradas apropriadas para coleções cristãs” (ARNOLD, 2008, p. 37).

Sara. Joao Timane, artista moçambicano, (sem data). Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/570549846542667795/

Voltando à questão da tecnicidade, tudo bem, claro, entendo artistas que não reconhecem arte de outros porque um às vezes pode ficar horas em seu estúdio e o outro repercute com meia hora de produção e uso de dois materiais. Mas não é a tecnicidade somente que leva algo a ser arte. Claro, a técnica faz parte do processo de criação e resultado de uma obra, mas ela não é exatamente o que faz uma obra de arte ser arte. Arte é sobre atingir, como já dito anteriormente. E às vezes pode ser difícil de algumas pessoas aceitarem que arte pode atingir independentemente de sua técnica, dizendo coisas como “Ah, eu também poderia fazer isso aqui” ou “Faria melhor”. A arte e sensibilidade do artista vão bem mais além de você acreditar que tem capacidade de reproduzir sua técnica, pode acreditar.

A tecnicidade não define, necessariamente, a qualidade da obra de arte e, na verdade, “qualificar” uma obra de arte pode ser um tanto complexo, pois é como se houvesse um termômetro com características gerais, e definição pura do que é arte para qualificar uma “mais arte” que outra, ou “melhor” – e esses critérios teriam que sobretudo se diferenciar extremamente dependendo da região, cultura e tradições. Um erro comum é querer usar esse “termômetro” imaginário colocando os mesmos critérios colocados as artes “clássicas” para todos as artes produzidas em todos os outros períodos da história da humanidade em todo o mundo independentemente de questões locais. Isso não existe.

Querer se colocar como melhor que o artista só porque ele não atingiu suas expectativas em questão de uso de materiais ou técnica é uma batalha vã. Arte não precisa ser algo impossível, genial no sentido de inalcançável. Não convém se apegar tanto à essa ideia de “imacular” o significado de arte, os artistas, suas técnicas e ideias – que se deve muito ao que já vimos sobre narrativas de artistas-gênio, aqueles que fazem coisas “impossíveis” comparados a uma pessoa “normal”. Falaremos melhor sobre isso mais adiante.

Também, muitas vezes se associa algo “mais arte” ou “menos arte” pelo seu grau de inovação.

“Devemos levar em conta os modelos que utilizamos quando fazemos história da arte; em realidade isso acontece raramente e antes continuamos a utilizar certos elementos característicos desses modelos como se fossem garantia de verdade absoluta, mas sem procurar nos interrogar sobre seu significado e sobre o sentido de sua utilização num certo contexto. Com muita frequência, por exemplo, fazemos intervir como ultima ratio [último argumento] o critério de qualidade, mas podemos realmente dizer que estudamos seriamente a história desse termo de sua utilização, podemos nos dizer capazes de descrevê-lo, defini-lo, compreender o papel que ele tem no interior de um certo modelo de história da arte? Usamos sem muita reflexão termos como “qualidade” e “inovação”, confiantes que possam ser instantaneamente compreendidos; mas será que percebemos de fato o que eles significam e comportam? Segundo o modelo de história da arte que geralmente adotamos, o motor do desenvolvimento é a inovação. Pode funcionar para certos períodos da história da arte ocidental, mas não funciona para a arte bizantina nem para a do Extremo Oriente. Além do mais, para nós contemporâneos é óbvio que a inovação se identifica com a qualidade.” (CASTELNUOVO, 2006, p. 143 e 144)

Também uma outra forma de vermos arte vista como “mais arte” que outras é no que diz respeito a subversão justamente do que se considera “arte”. Um exemplo clássico é a “Fonte” de Duchamp. Aqui, tem a questão do “chocar”, quando subverte o conceito de arte considerando uma expectativa pré-existente em relação aos seus significados, ainda que o que o objeto exposto esteja numa apresentação de obra de arte. Muitas pessoas consideram essa uma das formas mais sublimes de arte, quando num determinado cenário, seja na música, na fotografia, no teatro, algo de seu meio subverte o próprio significado dessas palavras, em suas respectivas áreas. A subversão não necessariamente é feita intencionalmente para inovar ou chocar, mas isso pode acontecer consequentemente ao artista subverter significados pré-existentes, sendo essa consequência uma intenção primária do artista ou não. A partir da obra do artista francês Duchamp, que, no caso, foi uma forma de subversão aparentemente consciente num sentido de “chocar”, mudou-se muito as expectativas em relação a arte e suas histórias. Uma proposta para se questionar o significado atribuído a arte. Particularmente, acho realmente incríveis as artes que subvertem, mas, ainda sim, não necessariamente arte precisa “chocar” ou “subverter”, ou ser feita na intenção disso. Na verdade, acho mais lindo ainda quando é feito sem sua intenção, de forma natural.

Fonte. Duchamp, artista francês, 1917. Disponível em: https://pt.quora.com/Por-que-algumas-pessoas-se-recusam-a-ver-obras-modernas-e-p%C3%B3s-modernas-como-arte

Voltando à questão de como a história nos é contada, precisa-se tirar esse estigma de história da arte tradicional e perceber outras formas de arte, outras histórias das artes, que aí se aprofunda numa infinidade de histórias e possibilidades. E é isso que é preciso se construir e desconstruir mais aqui no Brasil. Identidades nacionais e nossos gostos, sem ser pelo que decidem que devemos ou não gostar, ou imitar de outros países (não que seja um problema usar como inspiração... o problema é desvalorizar nosso próprio quando se considera o outro melhor), dando abertura e possibilidades para olhar nossos potenciais e objetos artísticos próprios e pensar em outras narrativas que podem ser contadas sobre o que é História da Arte a partir da perspectiva que queiramos construir/desconstruir, dando maiores chances de entender porque podemos gostar ou não gostar de determinada obra e porque isso pode acontecer (provavelmente pela narrativa central que fomos ensinados a seguir). Desconstruamos, construamos e estejamos sempre atentos aos discursos. Sempre.

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Por vezes as artes foram consideradas “maiores”: pintura, escultura e arquitetura e “menores”: tudo aquilo que não são as maiores (conceito em desuso, mas por muito tempo assim pensado). Só que esse “tudo aquilo que não são as maiores” tem uma riqueza imensa e muito variada, de forma que se torna muito errada considerá-las todas em uma só categoria. Além da chamada “cultura material”, termo usado para designar objetos de uso diário “não-ocidentais” – com muitas aspas porque ocidental aqui seria dizer a arte que não nos é ensinada a ser considerada arte: uma arte não feita para brancos europeus ricos consumirem – que também tem uma riqueza e variedade incrível, que muitas vezes não é vista como arte e somente como conteúdo arqueológico.

Mas está aí uma curiosidade “nobre” para os amantes da arte “culta”: muitas vezes os objetos que são contemplados hoje, tinham pouca ou nenhuma importância perto de objetos de uso diário. Como no exemplo que Arnold dá em seu livro:

“É importante lembrar, entretanto, que, no tempo em que foram produzidos, as cerâmicas e o mobiliário não raro eram considerados bens mais valiosos e prestigiosos do que a pintura ou a escultura. Assim, a ênfase e o valor que atribuímos à arte culta podem, na verdade, não condizer com a importância que seus contemporâneos lhe atribuíam. E a maneira como a história da arte pode distorcer o significado e a importância atribuídos aos objetos em sua época e nos dias atuais é algo a que retornarei diversas vezes neste livro.” (ARNOLD, 2008, p. 24)

A seguir por esse questionamento de tudo que não é considerado “arte nobre”, vamos a umas das questões mais polêmicas: “Mas filme de super herói não é arte, é?”. Bom, primeiramente, há toda uma questão em torno da fotografia e do cinema e a era da reprodutibilidade técnica – Walter Benjamin – além da questão de comparar o cinema com obras clássicas das “artes maiores”, como também já falado anteriormente (apesar de ter alguns eixos como “clássicos” no cinema também). Mas, pensando já termos superado isso e a questão aqui estar sendo a comparação de filmes de “nicho”, de entretenimento “leve”, comparados a filmes que “fazem pensar”, que “não dão o que você quer”, que são “cult”, só digo que há muita semelhança com o que já disse sobre o que é arte ou não. Muita gente nunca vai aceitar a saga de filme dos “Vingadores” como arte. Muitas pessoas nunca vão aceitar um filme “cult” que não as toca, arte. Eu só acho que, independentemente dos critérios que uma pessoa use para considerar algo arte ou não, se considere a proposta do objeto em si, e que há uma série sim, de artistas, no caso do cinema, envolvidos em uma produção, por mais ruim que você possa achar que ela seja (aqui retomo a questão da autoria dito anteriormente, e da genialidade. Assim como nas pinturas, no cinema alguns diretores são consagrados como gênios em comparação a outros, e também há relações hierárquicas, mas, ainda sim, traz uma questão que é difícil de ser colocada para alguns: o cinema é arte de muitas autorias). Então, de vez em quando, ao invés de defender tanto o que gostamos ou não gostamos com garras e dentes, é bom que se pense um pouco na proposta em si do objeto, e se considere todos os trabalhos realizados nele, por diferentes pessoas que ele possa ter-se envolvido no ato de sua criação, e o que ele pode oferecer além das expectativas que você criou para ele.

Essa questão de “fazer pensar” é uma exigência que fazem recorrentemente para o significado do que é ser arte. Aliás, mais uma delas. Nesse caso, acredito que seja uma crítica à questão comercial, como se “dar ao cliente o que ele quer” seja mais importante na produção de um filme do ponto de vista comercial do que se preocupar em aquilo ser artístico, provocar algo que possa incomodar. Essa briga comercial versus artístico em torno de cultura de massas e indústria cultural não é de hoje. Mas o que posso adiantar é que, é possível sim fazer críticas a apelos que possam ser considerados muito comerciais para um filme, mas não acho que resumir todo um trabalho nisso e todos que fizeram parte dele como se nada daquilo fosse arte seja a melhor ideia. Devemos tomar cuidado ao, novamente, se considerar e ver arte como algo inalcançável, imaculado, “puro”, e tentar impor esse conceito também ao cinema e outras produções audiovisuais, que aliás também já nem seriam parte dos “clássicos” dentre pintura, escultura e arquitetura, onde esse conceito é mais usualmente colocado (ainda que tenha “puristas” dentro do próprio cinema).

Estamos vendo bem aqui como se cria expectativa e se exige sobre uma obra. Arte não precisa atender às suas exigências ou expectativas para ser arte. E arte não precisa incomodar para ser arte. Ela não precisa falar diretamente de algo político pra ser arte (considero muitas vezes que ela já é um ato político em si). Tem gente que ama isso. E tem gente que procura arte para um momento íntimo de introspecção e contemplação, ou simplesmente fora de questões sociais. Qual o problema? Para uma pessoa, a busca por obras que geram inquietações é o que mais lhe toca, enquanto para outra aquilo que a tranquiliza é a que mais lhe toca. Arte é livre. Aliás, isso é uma das coisas mais belas que faz a arte ser arte: a sua liberdade de ser e estar. Onde quiser, com quem quiser, como quiser. Arte é naturalmente uma potência justamente por isso.

A cultura visual muitas vezes não é contemplada no universo de arte. Mas isso tem sido cada vez mais repensado. Anime (animação japonesa) é arte? Desenho animado é arte? Filmes de super-heróis são arte? Jogos de videogames são arte? Aqui cai numa questão muito delicada, também, que fala sobre a indústria cultural e a cultura de massas. Para Adorno e Horkheimer, para falar a verdade, querido defensor do cult, nem esse filme aí que você acha o ápice da genialidade do cinema é arte, querido. Como se não houvesse distinções entre um filme “a” ou um filme “b”, sendo todos produzidos para atingir você, público, a consumir, porque é assim que a indústria cultural funciona e somente isso. Então calma aí.

Também tem a questão, em alguns casos, de pessoas provocarem umas às outras quando não acharam um filme “bom” o suficiente: “Ah, mas esse filme valeu os 34 reais que você pagou?”. Isso pode ser um problema de vez em quando, se tratando de ver arte como produto simplesmente, que deva satisfazer a experiência de seus clientes. Arte não é para servir ninguém. Arte não tem obrigação nenhuma de lhe agradar, como já dito anteriormente. O preço que você está pagando para adentrar a uma sala de cinema é pela experiência do entretenimento livre do cinema. Você não está pagando o filme. Entende? O que você pode encontrar nessa sala, a forma que pode ou não te atingir, já não cabe mais a responsabilidade de ninguém (apesar de produtoras poderem receber reclamações). Arte pode ser um produto, ou não. Mas saiba que ela pode não atingir ou agradar, e você não vai ter certeza disso até a experiência com ela. Ela pode ter um valor por si, mas não ao valor que você acha que ela deva te dar de experiência pelo que você pagou, teoricamente, por ela. Por mais que um objeto artístico tenha valor, é difícil dizer que pagou pela arte dele em si.

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O que leva a outra pergunta muito recorrente. Quando alguém vê uma obra de arte contemporânea ou pós contemporânea, logo após o questionamento se aquilo é arte, ela pode se perguntar se aquela peça vale tal preço. Vamos lá... além da já falada questão da noção de “progresso” da arte e história da arte, o mercado de arte, mundialmente e no Brasil se dão em múltiplos fatores, para além do simples preço e comercialização das obras: “Em 2012, no mercado brasileiro, as obras de arte contemporânea mais baratas custavam, em média, cerca de R$2.000 cada uma e as mais caras giravam em torno de R$700.000, existindo uma variação grande, de peças por menos de R$300 e outras avaliadas em mais de R$8 milhões.” (QUEMIN; FIALHO; MORAES, 2014, p. 56)

A arte gira a economia de uma forma tão gigantesca no mundo que poderia ter mais conhecimento sobre ela pela sociedade em geral. Aliás, falar sobre alguns valores pode assustar alguns, ou como esse mercado acontece de fato pode trazer algumas problemáticas. É um tabu nas academias, de um ponto de vista mais geral. Não existe uma matéria “mercado de arte” ou “mercado e arte” no meu currículo acadêmico, o que dificulta bastante nossos trabalhos de certa forma, tendo que buscar sobre o assunto por conta própria ou de maneira informal com professores que estejam dispostos a lhe dar respostas ou caminhos sobre o assunto. São muitos vieses e muitas considerações a se fazer ao se tratar do valor de uma obra de arte. Há muitas, mesmo. E algumas talvez podem ser bem complexas, outras um pouco difíceis de encarar. O livro “O valor da obra de arte” conta mais sobre essa perspectiva por pessoas de influência no campo artístico brasileiro, recomendando, inclusive, sites como Artprice e Artnet que permitem “a pesquisa da evolução de preços de milhares de artistas, sobretudo a partir de resultados de vendas das principais casas de leilões.”, utilizados como parâmetros em diversas citações internacionais, apesar de não mostrar as casas de leilões em todos os territórios em que isso não é monitorado e organizado internamente, como no Brasil (QUEMIN; FIALHO; MORAES, 2014, p. 46)

“É comum confundir valor e preço assim como é recorrente imaginar que cabe apenas ao mercado a função de precificar as obras de arte. No entanto, o complexo processo de formação, consolidação e hierarquização dos valores da arte contemporânea (do qual a precificação faz parte) envolve pelo menos quatro instâncias fundamentais, cujas dinâmicas são distintas, mas inter-relacionadas: produção, reflexão crítica, institucional e mercado (...) O mercado de arte não é um ente abstrato nem uno. Na verdade, existem diferentes tipologias, que podem estabelecer-se de acordo com os objetos negociados.” (QUEMIN; FIALHO; MORAES, 2014, p. 33 e 37)

Em entrevista, perguntam ao artista Cildo Meireles: “Qual o valor da obra de arte?” E ele responde: “Em 1969, fiz a obra A árvore do dinheiro, com 100 notas de 1 cruzeiro, e o preço do trabalho era 2000 cruzeiros. Penso que isso resume bem a questão. Existe uma discrepância entre valor de troca e valor de uso, valor real e valor simbólico, entre significante e significado. O preço estipulado para essa obra era vinte vezes maior do que o valor das notas de dinheiro utilizadas para fazê-lo.” (QUEMIN; FIALHO; MORAES, 2014, p. 135)

Árvore do dinheiro. Cildo Meireles, artista brasileiro, 1969. Fotografia de Pat Kilgore. Disponível em: http://revistacarbono.com/artigos/04carbono-entrevista-cildo-meireles/

O que nos leva a outra questão: nosso mercado de trabalho. Em algumas universidades de direcionamento mais estadista, pode ser um tabu falar sobre dinheiro, salários, ou simplesmente falar do mercado profissional do historiador da arte, porque normalmente nos é direcionado continuar na academia e, direta ou indiretamente, não se envolver tanto com o sistema capitalista. Mas e quem não se vê na academia e percebe que o conhecimento gerado nela pode ser utilizado em diversas e diferentes plataformas profissionais? Particulares, empresariais, públicas, empreendedoras. O conhecimento sobre arte, imagem, entretenimento e cultura visual são de interesse plural, são conhecimentos extremamente valiosos e pertinentes que podem ser fonte para muitos ambientes e interesses profissionais diferentes.

O trabalho educativo citado em parágrafos anteriores é o trabalho mais comum de estágio para graduandos em História da Arte. Mas será que só nos é possível esse trabalho enquanto estudantes (ou já graduados)? Trabalho muito lindo, inclusive, que exerci com muito amor, paixão e alegria. Mas realmente só existe essa possibilidade? Que outros lugares mais poderíamos e podemos pertencer, estagiar, que não são tão faladas? Ou que ainda não existem como possibilidade de forma institucional?

Bom, como disse anteriormente, há muitas possibilidades para cientistas da imagem – se nos entendessem assim, e também se a academia nos formasse abrangendo mais essas possibilidades em outras formas de mercado (o que não posso dizer é que a academia não nos dá a prática, porque dá sim, apesar de não ser focada totalmente nisso e dar mais vazão ao ramo acadêmico). Como já dito anteriormente, falar sobre o mercado de arte na nossa universidade pode ser um tabu, bem como sobre o mercado geral da arte, e também o mercado profissional da arte. É visto somente um nicho, de museus, galerias e academias, e muito concorrido, às vezes, diga-se de passagem. E para falar bem a verdade, acho que essas duas questões estão muito relacionadas.

Eu sei que pode ser difícil aceitar o capitalismo de vez em quando, mas e aí? Como falar de arte sem entender o seu mercado, e consequentemente, minhas funções nele, sem seguir necessariamente e somente vida acadêmica? Como exigir o que eu quero e posso exercer sem saber sobre salários e modus operandi desse universo? Como exigir o que eu quero e posso exercer com todo o conhecimento de arte e imagem sem entenderem as nossas funções como historiadores e historiadoras da arte e seus múltiplos potenciais? (Apenas uma observação de certa relevância: muito se vê e se fala e se exige sobre desconstruções nas academias sem nem mesmo pensar e saber, estudar, entender mesmo, de fato, sobre a ordem vigente. Isso é muito recorrente, em diversos aspectos e temas. Nos atentemos e sejamos mais autocríticos quanto esse aspecto.)

Penso que às vezes talvez uma das melhores formas de se inserir no mercado onde queremos estar e provar nosso uso de conhecimento artístico, histórico, filosófico, literário, imagético, seja “arrombando” portas do lugares que queremos pertencer e exigir pelo menos que possamos dar-lhes uma pequena amostra de nosso potencial profissional. Ou simplesmente “arrombando” conceitos e criando nós mesmos nossas próprias oportunidades, ainda que ninguém tenha falado sobre ou pensado sobre elas ainda.

E, reforçando a ideia de nossas capacidades, o historiador da arte também é mais ainda do que um cientista da imagem: presunçosamente ou não, seguindo Aby Warburg, podemos nos chamarmos de historiadores da cultura, quando consideramos, por exemplo, toda a ramificação de relações geradas e oriundas das obras – na verdade, aqui, para Warburg, história da cultura significa todo um complexo de ciências, além das já pensadas formas de ver história da arte como história da cultura antes introduzidas antes por Hegel e depois por Winckelmann. E sobre elas, também é importante lembrar que é uma cultura em torno não só das peças que estão “vivas” para nós hoje, mas também todas aquelas que se perderam e suas respectivas ligações:

“Este ponto é mesmo crucial, nossa história é baseada sobre um conjunto de obras que sobreviveram a mil perigos dos quais outras não puderam se salvar. Devemos levar em conta aquilo que permaneceu e aquilo que se perdeu, e como e o porquê desta seleção; para fazê-lo, devemos reconstituir a história das instituições, dos museus, das historiografias, da recepção, em outras palavras, devemos reconstruir o modo pela qual a história da arte se desenvolveu, foi escrita e em que materiais se baseou”. (CASTELNUOVO, 2006, p.143)

Além disso, estejamos atentos a algo não dito aqui antes: Quantas citações com mulheres vocês viram nesse texto? Entre outras representatividades. Isso porque, também, a cátedra de história da arte foi formada com base na relação com essas arte-artistas “cânones” europeus, majoritariamente homens, brancos. E grande parte dos percussores na escrita das histórias das artes se sucederam assim também. Não é uma crítica a eles diretamente, acredito que são incríveis suas atuações e isso também é motivo de serem citados aqui. Mas sim, há toda uma estrutura colonial que ainda seguimos, ingenuamente, tantas vezes. A maioria desses historiadores da arte fazem parte do meu currículo da faculdade, e nenhum problema nisso. É só uma questão de prestar atenção em como os discursos são formados para nós e por quem, bem sobre como reproduzimos eles. Dana Arnold foi uma das autoras mais citadas aqui, adorei o trabalho dela (que inclusive, fala muito sobre essas questões em seu livro) – recomendo para todas e todos que se interessam em saber sobre história da arte, bem como para já estudiosos da área. Somente uma professora a indicou. “Assim, podemos perceber como as várias maneiras de escrever sobre história da arte alteram a forma de ver um objeto e refletir sobre sua história”. (ARNOLD, 2008, p. 43)

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Com isso, ainda falemos sobre as preferências e o gosto e atuação do historiador da arte. Muitas historiadoras e historiadores da arte, ainda que entendam o andamento dessas narrativas, reproduzem um discurso dessas genialidades que tanto falamos sobre, focada numa história masculina eurocêntrica “civilizada”, que automaticamente se liga a ideia, querendo ou não, dos artistas que tratamos como gênios ao longo de tanto tempo e ainda hoje em nossa história: e tudo bem. Mas a questão da genialidade, aqui, vai para além disso, tem relação com toda a forma de ver a arte em questão de progresso estilístico, técnica, etc.: e tudo bem também. Realmente tiveram muitas e muitos artistas que se destacaram na história ocidental (apesar da predominância evidente de homens nas narrativas). Só é importante lembrar o discurso que esteja reproduzindo, atento ao porquê o escolheu e que atente também seus ouvintes:

“Pessoalmente, acho necessário despojar-nos de muitas ides reçues [ideias feitas], como as de autonomia do fato artístico – que existe somente a partir do momento em que é proclamada e que pode levar a singulares incompreensões se aplicada sem controle histórico -, ou a do artista herói – imagem que, no fundo, de um modo ou outro, nós, historiadores da arte, continuamos a carregar (...)” (CASTELNUOVO, 2006, p. 145).

Ainda assim, pode fazer sentido e tocar alguém o que aquela outra ou outro artista cânone fazem, dentro dessa narrativa e, como já dito: tudo bem. Às vezes há demasiada exigência em tomar régias políticas em relação às narrativas na academia, mas às vezes aquilo simplesmente pode ser pura ligação das mais diversas para o historiador da arte ao tratar de uma obra ou artista. Como historiadores da arte devemos estar atentos aos discursos, mas também compreensivos com quem quiser seguir por esses caminhos considerados “tradicionais”, se fizer sentido para aquela pessoa:

“Não adianta você querer se posicionar indiferente ou mentiroso perante uma coisa que lhe agrada ou desagrada: É infinitamente melhor nada saber sobre arte do que possuir uma espécie de meio conhecimento propício ao esnobismo. O perigo é muito real. Existem pessoas, por exemplo, que apreendem os pontos simples que tentei destacar neste capítulo, e que entendem haver grandes obras de arte destituídas de qualquer das óbvias qualidade de beleza de expressão ou correção de traço, mas ficam tão orgulhosas de seus conhecimentos que fingem gostar somente daquelas que não são belas nem foram corretamente desenhadas. Estão envolvidas pelo temor de que as considerem pouco educadas se confessaram gostar de uma obra que parece ser obviamente agradável ou sobretudo comovente. Acabam sendo esnobes que perdem sua verdadeira fruição da arte e chamam "muito interessante" a tudo que, na realidade, consideram um tanto repulsivo." (GOMBRICH, 2008, p.37)

Como já disse Castelnuovo em seu texto: “Alois Riegl escreveu certa vez que o melhor historiador da arte era aquele que não tinha nenhum gosto, nenhuma preferência pessoal. Isso é evidentemente impossível.” (CASTELNUOVO, 2006, p.143). Sim, cabe ao historiador da arte estar aberto a saber receber todas as formas de arte, sentindo-as, deixando-se levar isso em todo seu corpo. Mas também, depois, analisando-a de forma a pelo menos pensar que possa estar abrangendo diversos pontos e vieses em sua análise. De qualquer forma, é importante lembrar que nem sempre nós, historiadores da arte, temos respostas para tudo, para todas as obras de arte do mundo, e, que bom! “Ninguém deve pensar que sabe tudo a respeito delas, pois ninguém sabe.” (GOMBRICH, 2008, p. 36).

"Às vezes encontramos pessoas caminhando por uma galeria de arte, catálogo na mão. Sempre que param diante de um quadro, buscam pressurosamente o número. Podemos observá-las folheando seus livros, e, assim que encontram o título ou o nome da obra, seguem em frente. Não faria diferença nenhuma se tivessem ficado em casa, pois mal olharam para o quadro. Apenas checaram o catálogo. É uma espécie de curto-circuito mental que nada tem a ver com o prazer que um quadro pode produzir. As pessoas que adquiriram algum conhecimento de história da arte arriscam-se, algumas vezes, a cair numa armadilha semelhante. Quando veem uma obra de arte não param para olhá-la, preferindo sondar a memória em busca de um rótulo apropriado. Podem ter ouvido que Rembrandt era famoso por seu chiaroescuro - que é o termo técnico italiano para designar o jogo de luz e sombra -, de maneira que meneiam sabiamente a cabeça quando veem um Rembrandt, murmuram "maravilhoso chiaroescuro" e passam logo ao quadro seguinte." (GOMBRICH, 2008, p. 37).

Pois bem, é mais ou menos esse tipo de conhecimento que esperam e possam querer cobrar do historiador da arte ou nós mesmos para nós, o que é totalmente um erro absoluto. Que importância tem saber o uso da palavra chiaroescuro e sua aplicação em determinada obra relacionados aos padrões do artista de determinada época sem nem ter se atentado ao que realmente aquela obra tem a lhe fazer sentir, pensar, atingir?

“Não confio numa chave de leitura preferencial, numa espécie de fórmula ou, como se diria em certa época, de “algoritmo” ou de “chave mestra” que, se bem aplicada ao objeto, permitiria entendê-lo de modo pleno e satisfatório.” (CASTELNUOVO, 2006, p. 144). Há, quando dizem sobre essas ramificações todas ligadas a obra de arte para compreender melhor sua história, o uso de diversas áreas do conhecimento para tal, em grande parte das vezes. Filosofia, sociologia, história, arqueologia, matemática, ciências da natureza. Redes de contato diversas podem ocorrer em torno de uma obra de arte, que está totalmente ligada à como construímos e pensamos a cultura, como uma forma de história da cultura. Por isso, segundo Aby Warburg, também se considera história da arte como história da cultura: “Quem indicou o caminho nessa direção foi o grande Aby Warburg, em cujos ensaios as obras de arte são abordadas em seus diferentes aspectos e na diversidade de seus componentes estilísticos, iconográficos, históricos, sociais.” (CASTELNUOVO, 2006, p.140).

“Enfim, outra condição especial: é necessário que o próprio olhar seja ainda capaz de observar, que ele não esteja cansado por um trabalho excessivo, fechando-se às coisas do mundo visível; (...). Essa aptidão visual transparece já na contemplação da natureza. O obtuso necessita do estímulo extraordinário e pitoresco: ele não olha mais o resto da paisagem, e esta última não age mais sobre sua imaginação. Por outro lado, para o receptivo, toda a natureza circundante é plena magia, quer se trate de uma silhueta de montanha ou de rio, o contraste entre as flores de um pomar, ou ainda do último raio de sol vespertino sobre as nuvens majestosas. Essa abertura do espírito, que pode desfrutar do mínimo detalhe e sabe construir a partir do nada, saberá também servir à observação da arte.” (BURCKHARDT, 1874, p. 185)

Sim, há tantas exigências sobre o que querem dizer sobre o que é, deve ou não ser arte. Mas ela está aí justamente para dizer o que ela é e deve ser sempre: livre! Está tudo bem gostar de arte naturalista e também gostar de arte abstrata, está tudo bem gostar de arte renascentista italiana e (ou) arte contemporânea. Ou não gostar de nenhuma delas. O importante é se dispor a entender o que lá no fundo toca determinada obra de arte em sua alma, e porque talvez não tenha dado oportunidade de alguma fazer o mesmo. Afinal, você também é livre. Mas lembre-se: a arte não é necessariamente concebida para atender às suas expectativas, ou para você designar factualmente o que ela deve ou não deve ser: “a história da arte não consiste apenas em descrever imagens que representam o mundo que desejamos ver” (ARNOLD, 2008, p. 41). Mas você pode se interessar por ela, pode estudá-la, pode falar sobre ela. Não há certo ou errado. Traga suas experiências, pensamentos e sensações à tona. Procure pessoas que falam sobre o assunto se quiser conversar sobre isso, mas, claro, se tiver realmente interessado, não se quiser somente provocar um especialista. Estamos sempre abertos a pensar e discutir sobre as coisas, mas não adianta provocar uma questão e não estar aberto a ouvi-la de volta. Recorra de forma que esses conhecimentos buscados abranjam seus olhares, não que crie mais preconceitos e estereótipos ao observar uma obra de arte. "Quero ser muito franco a respeito desse perigo de semiconhecimento e esnobismo, pois todos somos suscetíveis de sucumbir a tais tentações, e um livro como este pode aumentá-las. Eu gostaria de ajudar a abrir olhos, não a soltar línguas." (GOMBRICH, 2008, p.37); “A história da arte é matéria aberta, à disposição de todos os que estejam interessados em admirar o visual, refletir sobre ele e compreendê-lo.” (ARNOLD, 2008, p. 17). E claro, como vimos, a forma como as histórias das artes nos são contadas e a maneira como temos contato com elas podem influenciar e muito nas maneiras de receber obras de arte e imagens no geral. Estejamos também atentos às formas como reproduzimos, contamos e criamos essas histórias, e não deixando de sermos felizes em conta-las.

REFERÊNCIAS

ARNOLD, Dana. Introdução à História da Arte. 1ª. ed. São Paulo: Ática, 2008. 144 p. ISBN 978-85-08-11701-7.

BURCKHARDT, Jacob. Sobre a História da Arte como objeto de uma cátedra acadêmica (1874). In MARTINS, Estevão Rezende. Org. A História Pensada: teoria e método na Historiografia Europeia do Século XIX.

CASTELNUOVO, Enrico. In Retrato e Sociedade na Arte Italiana: Ensaios de História Social da Arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. (História Social da Arte)

FRAGA, Marina; URANO, Pedro. Carbono entrevista Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Revista Carbono, 2013. Disponível em: http://revistacarbono.com/artigos/04carbono-entrevista-cildo-meireles/. Acesso em: 27 maio 2020.

GOMBRICH, E. H. Introdução. in A História da Arte. 16ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

MARTINEZ, Tiago. Por que algumas pessoas se recusam a ver obras modernas e pós-modernas como arte?. In: MARTINEZ, Tiago. Por que algumas pessoas se recusam a ver obras modernas e pós-modernas como arte?. [S. l.], 19 nov. 2019. Disponível em: https://pt.quora.com/Por-que-algumas-pessoas-se-recusam-a-ver-obras-modernas-e-p%C3%B3s-modernas-como-arte. Acesso em: 27 maio 2020.

QUEMIN, Alain; FIALHO, Ana Leticia; MORAES, Angélica de. O Valor da Obra de Arte. São Paulo: Metalivros, 2014. 240 p. Entrevistados: Cildo Meirelles, João Carlos de Figueiredo Ferraz, Luisa Strina e Tadeu Chiarelli.

TIMANE, Joao. Sara. Arte de Moçambique. Pinturas de Moçambique: Artes plásticas moçambicanas. Obras de João Timane. Pintura artística moçambicana. Timane paintings. African paintings African art. Art from africa. Contemporary artists Contemporary African paintings. In: TIMANE, Joao. Sara. [S. l.], 2019. Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/570549846542667795/. Acesso em: 27 maio 2020.

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Amanda Annunziata

Historiadora da arte que ama entretenimento, ciências da natureza, línguas, música, literatura e filosofia — e cresceu assistindo animes.