“Uma volta pela ternura e balanço dos anos 80”: uma playlist de um tempo que passávamos fora das telas móveis e redes sociais

Amanda Annunziata
12 min readOct 3, 2020

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PLAYLIST a que o texto se refere: https://www.youtube.com/playlist?list=PLnvsMk7bbWgN2ipcoKp26f3bGOcJq6koB

Escolhi 13 videoclipes para a playlist “Uma volta pela ternura e balanço dos anos 80”. Em uma era de bombardeamento de informações, sobretudo pelo fenômeno dos smartphones, passamos a ter uma relação diferente com o tempo. Acredito que, de certa forma, muitas coisas se tornaram líquidas no formato que estamos seguindo de consumo exacerbado de informação e imagem, como já observava Zygmunt Bauman. Os anos 80 foram marcados justamente por ir deixando, aos poucos, a era marcada pelo industrial para a era marcada pela informação. Ainda que tenha ocorrido alguns golpes militares pontuais no mundo, foi uma década marcada, já depois de diversas manifestações sociais dos anos 60 e 70, por vitória de liberdade de alguns regimes, apesar de ainda ter sido uma década marcada pela Guerra Fria. Nesse contexto esses intensos anos de disputas trouxeram avanços tecnológicos e os primeiros telefones celulares, mas muito longe do que consideramos hoje a função de um aparelho celular. Naqueles tempos, os telefones começariam a passar de fixos à circulação de forma livre entre as pessoas: o começo de uma liberdade, ou de uma prisão.

A atenção ao corpo e ao espaço nos anos 80 somadas a conquistas de movimentos sociais mostra a dança como uma manifestação importante. O balanço da música pop dos anos 80 traz uma sensação nostálgica, sentimento que vem à tona para muitas pessoas mesmo para aquelas que não vivenciaram essa época, como ocorre nos depoimentos de comentários dos vídeos utilizados. Talvez porque, de certa forma, esse estilo musical e seus vídeos mostram uma era em que o tempo ainda se passava de uma maneira diferente, sobretudo em que relações aconteciam corpo a corpo e olho a olho, no máximo com ligações entre telefones fixos. A democratização de informação se torna importante com a internet a partir da segunda metade dos anos 90, mas afetou significativamente a forma das pessoas se relacionarem, sobretudo com as redes sociais posteriormente nos anos 2000 e atualmente, sobretudo. A história é contada através das relações entre as pessoas, e as diferenças dessa época dos anos 80 para a nossa se dão de maneira tão estridentes justamente pela mudança na forma de se relacionar causada pela era da informação — Bauman inclusive fala que em nossa época as coisas não são feitas para durar, o que acaba também atravessando as relações. Na era atual que estamos dos smartphones isso se mostra de maneira ainda mais intensa, de certa forma, até mais agressiva: com nosso corpo, mente, relações, etc.

Você não precisa necessariamente ir até o local da informação para tê-la, ou encontrar as pessoas para contatá-las. Está tudo na palma das mãos aonde quer que a internet do usuário vá, podendo fazer com que a fortaleza das informações se tornem tênues e quebradiças (com leituras cada vez mais rápidas e pouco aprofundadas além do que estamos presenciando com o fenômeno das “fake news”). As relações, também, acabam sendo condicionadas a serem mais frágeis. Reações em redes sociais podem ter significados diversos — e se somam a novas ferramentas de tempos em tempos, quase que substituindo ou tentando substituir expressões corporais e faciais, gestos e afetos.

O balanço pop dos anos 80 traz uma nostalgia desse tempo que passava de maneira diferente, marcada por uma das últimas décadas ainda dentro de valores socioafetivos de anos anteriores longes da era da informação. Na playlist há músicas em inglês, japonês e português, exibidas por vídeos em animação ou não. Achei interessante trazer a animação para marcar também essa estética desse tempo. Apesar de também ter trazido músicas e vídeos dos anos 2000, todos foram pensados para trazer uma outra realidade de tempo e espaço vinculada aos anos 80.

O videoclipe que inicia a playlist é cantada em japonês e vem do filme de animação japonesa: “The Super Dimension Fortress Macross: Do You Remember Love?” de 1984, e mostra a fantasia futurística marcada em diversos longas-metragens e séries ao redor do mundo dos anos 80, na esperança de algo mágico e fantástico que facilitasse a vida das pessoas e levasse talvez à nossa maior compreensão da existência humana e suas possibilidades, sobretudo em relação ao espaço sideral — não um futurístico que nos trouxesse angústias, ansiedades e outras fragilidades. Essa época foi muito esperançosa na ciência da humanidade e trouxe isso muito à tona em diversas ficções científicas.

O vídeo de “One More Time” vem de um trecho introdutório do filme “Interstella 5555” de Daft Punk, com animação franco-japonesa em uma história contada sem falas e inteiramente por músicas do disco “Discovery” da banda. Até agora os dois vídeos da playlist são marcados por relações da humanidade com o espaço sideral de forma direta ou indireta — e inclusive têm diversas semelhanças estéticas e de conteúdo narrativo. Apesar de estreado em 2003, o filme traz a realidade de uma banda com semelhanças visuais e outros aspectos que remetem os anos 80. A música como um todo e sua letra falam sobre parar e sentir a música, “you can’t stopah” (“você pode parar”), dançar e sentir as relações, celebrar, com imagens de várias pessoas se divertindo dançando juntas.

A música “Hungry Eyes” de Eric Carmen faz parte do filme Dirty Dancing e o vídeo traz diversas cenas dele. Dirty Dancing é um filme de 1987 marcado por uma relação da liberdade através da dança, assim como muitos outros desses tempos (como Footlose). A música traz um ritmo e roupagem muito típicos da época e o longa-metragem trazido no videoclipe é tema de uma relação amorosa marcada por muita presença, muito olho no olho, corpo a corpo, expressividades diversas corporais, faciais, gestuais, numa época em que não existia redes sociais além das reais, em que se conhecia as pessoas por aquilo que elas nos causavam em ações presenciais.

Nothing’s Gonna Stop Us Now” estreada em 1987 por Starship se assemelha a relação do balanço rítmico e de um casal marcado por experiências reais como no vídeo com cenas de Dirty Dancing — apesar de o vídeo não ser exatamente de um filme, mas ter takes da banda baseadas em cenas da comédia romântica fantasiosa também de 1987 Mannequin (a música faz parte da trilha sonora do filme), que traz também temáticas de dança. A tradução da letra da música é “Nada irá nos parar agora” e traz a atmosfera de sonhos e audácias da paixão juvenil dos anos 80.

Footloose” é a música tema do filme Footloose estreado em 1984 que traz como tema a liberdade de expressão através da dança de maneira densa, mas, no caso, para além do casal central, o tema tem um viés mais político e um pouco mais dramático que Dirty Dancing (que também traz um pouco desses vieses). O videoclipe disponibilizado é inteiramente um trecho (final) do filme, sem cortes, em que as pessoas aparecem dançando, se expressando à sua maneira e se libertando de diversas formas através do corpo. E pasmem: sem celulares nas mãos! O tema dançado é mais marcado pelo ritmo do rock.

What a Feeling” interpretada por Irena Cara vem do filme Flashdance — muitas músicas “viralizavam” a partir de temas de filmes. No filme de 1983 a personagem Alex interpretada por Jennifer Beals inspirou muitas mulheres. Diferente de outros filmes citados baseados na dança em que trazia um casal como trama central, o filme Flashdance se dedica centralmente aos esforços, batalhas e conquistas da protagonista que é impulsionada também por outras personagens mulheres, apesar de ter um romance na história. Trata-se de uma protagonista que representa uma independente, que assume suas escolhas como uma mulher livre, independentemente de julgamentos sociais.

Não poderia ficar de fora uma música baseada em esportes nessa playlist: “Hearts on Fire”. Além da dança, o corpo estava à tona nos anos 80 com diversos filmes de luta e superação como Karate Kid (1984). Rocky estreou no final dos anos 70 e fez muito sucesso nos anos 80 e 90, finalizando a saga somente em 2006. A música escolhida é do filme “Rocky IV”, de 1985, atuado e roteirizado por Sylvester Stallone, em uma narrativa marcada fortemente pelo contexto da Guerra Fria e disputas em muitos sentidos, inclusive tecnológicas. Rocky vai treinar nas montanhas enquanto o adversário russo treina nos “mais avançados” recursos, tomando injeções anabolizantes entre outras intervenções que fogem do natural.

I Wanna Dance With Somebody” volta ao tema da dança com Whitney Houston, tendo o título significando “Eu quero dançar com alguém” em tradução livre. Ou seja, para além da expressividade corporal se traz à tona novamente as relações e o compartilhar da dança com o outro. E a letra do refrão continua: “Somebody who loves me” — “Alguém que me ame”. É um clipe com muitos takes coloridos com vários detalhes e cenários diferentes, e mostrando muitas manobras de dança. Todos os personagens secundários anônimos no vídeo são homens, o que acredita se dever para destacar a cantora Whitney. É um vídeo de muita alegria, festividade, ritmo, balanço, e tem isso como tema central, dispensando objetificações do corpo ou extrema sexualidade da cantora (ainda que envolta de muitos homens) para ser um vídeo que evidencie a força e beleza dela de forma contagiante e carismática.

Cantada em português pela banda porto-riquense Menudo formada em 1977, “Não se reprima” foi lançada em 1984 e fez muito sucesso no Brasil como versão aportuguesada da letra original “No te Reprimas” lançada em 1983. Apesar de não ser propriamente pensado para ser um videoclipe, a versão em português na plataforma Youtube só aparece com trechos de exibições televisivas (a versão do videoclipe original com letra original está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hpqHg8v_bSE.). O vídeo e a letra da música mostram o cenário de como essa cultura corporal de balanço e ritmo dos anos 80 passava também pela América Latina e passou por diversas cenas musicais em nosso país (como se apresenta no filme brasileiro Bete Balanço de 1984, ainda que mais marcado com ritmo rock) — se tornando a televisão também um importante eixo de divulgação nessa época, com programas que traziam celebridades de outros países e passavam em rede nacional (como é o caso da gravação apresentada no vídeo). A letra traz certa pureza e ingenuidade, ainda que para alguns também a mensagem “não se reprima” possa ter dado margem a diversas interpretações a respeito do que exatamente isso queria dizer — como em relação a homossexualidade — que, de qualquer forma, é algo também extremamente belo. A letra também fala sobre não segurar os instintos e fazer o que manda o coração.

Daft Punk volta com a animação ao som de “Digital Love”, mas que mostra que de “amor digital” a música e vídeo não têm nada, mostrando como tema uma relação amorosa pura, sincera, genuína e fraterna entre o casal mostrada na narrativa do filme. Além da música um tanto experimental, o vídeo traz um relacionamento amoroso muito diferente das mensagens e reações em redes sociais que induzem a relacionamentos extremamente frágeis e líquidos. A letra, estética, ritmo da música e experimentações instrumentais unidas a história do filme tornam o videoclipe sensível e único.

Logo depois vem Rick Astley com sua dancinha característica balançante em “Never Gonna Give You Up”. Esse tipo de manifestação dançante do cantor sem grandes manobras logo no início do vídeo lembra os conceitos do autor Laban que conceitualizam a ideia de que todo mundo pode dançar, na medida que todo movimento do corpo pode formar uma dança: balançar a cabeça, sacudir os braços, torcer, etc. — a melhor explicação de suas ideias aparece em: https://www.youtube.com/watch?v=wZ1rN4uEacI, especialmente em 11:45. O livro “Domínio do Movimento” de Rudolf Laban, muito importante na área da dança e cultura corporal em geral teve sua primeira publicação em 1950 e sua primeira publicação traduzida para o português em 1978. O vídeo de “Never Gonna Give You Up” assim como Footloose e outros da lista também mostra pessoas dançando, inclusive se destaca um personagem anônimo (um garçom, provavelmente) que aparece secando copos em um suposto bar e começa a se alegrar manifestando a expressividade do corpo pela música. Imagens feitas na cidade com o cantor ou outros personagens anônimos dançarinos também chamam a atenção com diferentes manobras no ar.

Depois vem Daft Punk novamente com “Too Long” com diversas experimentações musicais do trecho que encerra o filme Interstella 5555. No final mostra bem o que quis trazer do aspecto dos anos 80 com a mãe tirando o disco de vinil do toca disco no quarto do filho e o colocando para dormir na cama, o que dá a entender, junto com outras características do filme, que a animação podia se passar por volta dos anos 70/80 — ou, pelo menos, é marcado por características desses tempos. Importante ressaltar que esse filme é uma crítica a indústria musical, que fez com que muitos dos artistas citados nesse texto ficassem doentes, caíssem em depressão, fossem reprimidos, assediados, entre outras terríveis situações que podem ter acontecido nessa era e até hoje acontece muito, mas que na época havia um silenciamento ainda maior sobre o tema.

E para encerrar, nada mais, nada menos, que Mariya Takeuchi com “Plastic Love”, música muito característica do pop japonês dos anos 80, que remeta a uma vida noturna entre altos prédios, luzes e carros da cidade em que tudo podia ser possível, e com muita música como essa tema para cenas dessas possíveis aventuras. É o único videoclipe da lista que traz uma única imagem, da própria cantora, que aliás é capa do single. Gosto muito dessa foto de Mariya porque acho que traz uma inocência e pureza justamente do que quis passar nessa playslit. A fotografia traz os cabelos de Takuchi com leve movimento, um sorriso leve e um olhar inocente. Dá a sensação que ela estava feliz na época dessa foto. A roupa remetendo uniformes dos anos escolares elementares no Japão com a camisa branca e a gravata borboleta, reforçando a ideia de inocência e brilho da juventude, que também acredito ser algo extremamente marcante dessa época. É uma era marcada por muita esperança, rompimentos e expressão jovem marcada de possibilidades e desejos.

O álbum ganhou várias FanArts. Uma das mais famosas é essa que acompanha a versão em inglês da música no youtube disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vunm-W-ovLc

Foi pensado propositalmente iniciar e encerrar a playlist com músicas japonesas, que foram o início da ideia da playlist. Ela pode ser ouvida começando pela música de Takuchi ou de SuperRiser. A de Takuchi foi pensada para iniciar a playlist, mas se fez bem também em seu encerramento. Recentemente a música ficou conhecida após viralizar o comentário do internauta “J K” no vídeo, contando sobre a história de amor entre ele e sua atual esposa. O relato também traz um fundo inocente de uma época nostálgica da infância deles: “Lembro-me de ter crescido no Japão quando tinha 10 anos. Eu tinha acabado de sair de uma livraria e uma garota bonita da mesma idade timidamente estendeu a mão para mim e perguntou se eu queria passear com ela. Essa música estava tocando no rádio onde paramos para comer ramen juntos. Ela nunca me deu seu nome, mas me disse um dia para sempre encontrá-la para dar as mãos e caminhar ou fazer um piquenique. Finalmente descobri o nome dela alguns meses depois — Mitsuki. Tornamo-nos amigos íntimos, mas meus pais aceitaram um emprego na América quando tínhamos 13 anos, então tive que deixá-la, nós dois chorando e rindo. Eu mandaria cartas para ela e ela mandaria cartas de volta. Aos 22, de repente ela parou de me enviar. Eu pensei que ela tinha morrido. 5 meses depois, ela estava na minha porta na América, com a mão estendida para mim quando eu abri a porta. Estamos casados ​​na casa dos 40 agora, e temos caminhado por várias cidades juntos em todo o mundo e sempre paramos em algum lugar que tenha noodles e tocamos essa música em nosso telefone. Obrigado Mariya. Seu amor pode ser de plástico, mas o meu é lindo graças a essa música. Se você vir um casal de meia-idade com ou sem os filhos com eles, de mãos dadas e agindo como adolescentes ou mesmo crianças em Tóquio passeando pelas lojas, somos nós.” (tradução livre). Eu conheci a música e várias outras do pop japonês dos anos 80 depois de ver esse comentário que estava sendo viralizado na internet.

Para além de justificativas e outras considerações a playlist foi pensada sobretudo para ser gostosa de ouvir. Filmes apareceram com frequência porque também outra característica diferente da era que vivemos é que na década de 80 não existia plataformas de streaming como hoje (Netflix, Prime Video) em que filmes eram facilmente acessados de qualquer lugar quando quisesse — apenas alguns passavam na TV e muitas vezes de forma especial, não repetidas vezes como hoje (aliás, a TV tinha horário de funcionamento, não com programação direta como temos hoje) — quem dirá Youtube, que hoje é uma plataforma tão associada a videoclipes. No fundo os filmes marcavam tendências de forma ainda mais intensa naquela época, unificadas pela plataforma do cinema. Trilhas sonoras se tornavam quase que verdadeiros videoclipes dentro dos filmes e permeavam rádios e discotecas.

A questão da naturalidade é trazida à tona nessa playlist, seja na forma natural do desempenho corporal no esporte, na expressividade do corpo na dança, no envolvimento afetuoso em relações, na alegria real de momentos reais compartilhados entre as pessoas, e tudo aquilo que foge do artificial, líquido, distante e individualizado que estamos vivenciando na era dos smartphones.

Algo que a internet tem a contribuir muito são essas conversas perante conteúdos disponibilizados, portanto obrigada por compartilharmos isso juntxs! 😊

Um abraço sincero,

Amanda

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Amanda Annunziata

Historiadora da arte que ama entretenimento, ciências da natureza, línguas, música, literatura e filosofia — e cresceu assistindo animes.